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MINHA PROFESSORA INESQUECÍVEL – RECORDAÇÕES DA DOCÊNCIA KAXARARI

MINHA PROFESSORA INESQUECÍVEL – RECORDAÇÕES DA DOCÊNCIA KAXARARI

*Geovane Cesar de Souza Kaxarari

**Josélia Gomes Neves

Resumo – Os primeiros professores e professoras que conhecemos marcam nossa história de vida. Essa perspectiva  mobilizou a escrita do presente texto, cujo objetivo é relatar uma experiência sobre o início da escolarização a partir da memória. Foi possível observar que a professora Rosinalda Kaxarari teve um papel importante nas aprendizagens escolares iniciais das crianças da Terra Indígena Kaxarari, localizada em Porto Velho-RO. Concluímos que os textos escritos a partir das memórias dos estudantes disponibilizam informações históricas importantes sobre a alfabetização, o trabalho docente, as condições físicas e estruturais das escolas, dentre outros. 

Palavras-Chave: Didática Intercultural. Povo Kaxarari. Aldeia Pedreira. Terra Indígena Kaxarari.

Resumen – Los primeros profesores y profesoras que conocemos marcan nuestra historia de vida, considerando esta importancia es que escribimos el presente texto. El objetivo es relatar una experiencia sobre el inicio de la escolarización a partir de la memoria. El resultado de esta escritura señaló que la profesora Rosinalda Kaxarari tuvo un papel importante en los aprendizajes escolares iniciales para los niños de la Aldea Pedreira, localizada en la Tierra Indígena Kaxarari, Porto Velho-RO. Concluimos que los textos escritos a partir de las memorias de los estudiantes son importantes registros para la comprensión de la Educación Escolar Indígena una vez que presentan informaciones históricas sobre la alfabetización, el trabajo docente, las condiciones físicas y estructurales de las escuelas, entre otros. 

Palabras clave: Didáctica Intercultural. Pueblo Kaxarari. Aldea Cantera. Tierra Indígena Kaxarari.

Introdução

No decorrer do segundo semestre de 2021, discutimos no Curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural da Universidade Federal de Rondônia no âmbito da disciplina Didática Intercultural: processos de ensinar e aprender a importância dos professores e professoras que conhecemos e que marcaram as nossas vidas. Este texto constitui um recorte desta discussão, cujo objetivo foi relatar uma experiência a partir da memória, intitulada: “Meu professor ou professora inesquecível”.

As contribuições teóricas resultaram das leituras de Freire (1996) e Zabala (2014) por meio da pesquisa bibliográfica. Outro recurso utilizado foi a pesquisa narrativa, metodologia que fundamentou a escrita do relato, um registro que provoca “[…] mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros e, por este motivo, são, também importantes estratégias formadoras de consciência numa perspectiva emancipadora. […]”. (CUNHA, 1997, p. 185).

De acordo com os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas “[…]. São esses novos documentos pedagógicos instrumentos muito valiosos para o desenvolvimento do conhecimento profissional do professor indígena e do assessor e docente envolvido nos processos de formação”. (BRASIL, 2002, p. 39). A reflexão se justifica ainda como uma possibilidade de contribuição às Ciências da Educação Intercultural, principalmente à Educação Escolar Indígena de Rondônia.

Sobre docências extraordinárias

Carpe Diem! Aproveitem o dia!

Tornem suas vidas extraordinárias.

(Fragmento do filme: Sociedade dos Poetas Mortos).

Os estudos sobre as memórias estudantis acerca dos professores e professores que foram importantes para suas trajetórias de escolarização têm sido um dos temas de interesse da Didática porque evidenciam as relações entre discência/docência e suas repercussões para as aprendizagens e porque não dizer, para a vida. A perspectiva adotada neste texto, considera o pensamento freireano que entende que independente de suas formas de agir, alguns doentes permanecem nas lembranças dos estudantes: “O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, […] o professor amoroso da vida e das gentes, […] nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca”. (FREIRE, 1996, p. 39). Concordamos com Cunha (2004) que podem inclusive, produzir influências em relação ao fazer docente.

Um dos referenciais na literatura educacional que chamou atenção para o tema, foi o livro organizado por Fanny Abramovich (1997), intitulado “Meu Professor Inesquecível”. As participações de escritores, artistas e outros (as) convidados (as), explicitou que: “Cada professor, mestre, ensinante escolhido ficou na memória por décadas por ter sido um modelo, uma referência marcante e clarificadora de como ser…”. (ABRAMOVICH, 1997, p. 5). Nesta direção, podemos inferir que todos e todas temos uma história para contar a respeito de um professor ou professora que por meio da afetividade, compromisso profissional e postura política nos mostraram caminhos referentes à “[…] vocação ontológica para o ser mais […]”. (FREIRE, 1996, p.  9).

Outras leituras apontam que as relações interpessoais entre professor (a) e aluno (a) em muitas situações representa o principal fator que propicia o processo formativo: “Promover um ambiente propício à aprendizagem, especialmente numa realidade de sala de aula tão pouco propícia ao desenvolvimento do aluno, como geralmente é o caso da rede pública, é o grande desafio […]”. (DUARTE, 2004, p. 140). Significa dizer, que diante de tantas fragilidades apresentadas pelo sistema educacional, em determinadas situações, o que resta (e o que fica em nossas memórias), é o engajamento de docências, tal como no filme “Nenhum a menos”(2000) em que que lutam desesperadamente junto aos estudantes para que o projeto educativo alcance suas finalidades.

Em relação ao contexto indígena, a produção de relatos dos (as) estudantes da Licenciatura Intercultural possibilitam conhecer que professor ou professora foi importante em suas trajetórias escolares e em que contexto isso ocorreu. Neste sentido, há interessantes descrições que temos acompanhado no decorrer de nosso trabalho docente que disponibilizam pistas importantes a respeito do sistema educacional em Rondônia e noroeste do estado do Mato Grosso, em diferentes tempos e espaços, tais como: informações sobre as docências e suas formas de ensinar, nomes e descrição dos prédios escolares, materiais didáticos adotados, dentre outros elementos.

Neste processo formativo de lembrar como ocorreu o ingresso na escola, o relato apresentado pelo primeiro autor mostra importantes dados sobre a docência preferida e a luta que as crianças indígenas enfrentavam na época para assegurar o direito à educação: “A minha professora inesquecível foi a Rosinalda Kaxarari. A escola onde dava aula ficava a 3 km da minha casa. Eu lembro que eu saia cedo para a escola às 6 horas da manhã, tinha que sair muito cedo para não chegar atrasado na escola. […]”. (KAXARARI, 2021, p. 1).

Figura 1 – Professora Rosinalda Kaxarari e as crianças.

Fonte: Dados do estudo.

E neste contexto, a imagem da primeira escola que ficou mostra uma situação de precarização física: “A escola era de madeira e tinha uma pequena sala, mas foi ali que pude aprender as letras do alfabeto, pude aprender a ler e escrever o meu próprio nome. […]”.  (KAXARARI, 2021, p. 1). Havia uma fragilidade quanto à estrutura escolar que mostra sua inadequação para o trabalho pedagógico de qualidade. Apesar do tempo, essa situação ainda faz parte da realidade de muitos povos indígenas em que as escolas funcionam de forma instável à base do improviso: “[…] em sua maioria são na própria maloca, na casa do cacique ou em casas de madeira construídas pela prefeitura. […]”. (MELLO at al, 2018, p. 5).

Figura 2 – Escola Kaxarari 1.

Fonte: Dados do estudo.

Além das lembranças das estruturas escolares, a discussão sobre as docências que marcaram nossas vidas evidencia que a memória é formadora na medida em que estas lembranças podem influenciar o futuro trabalho na sala de aula, pois: “É de sua história enquanto aluno, do resultado da sua relação com ex-professores que os bons professores reconhecem ter maior influência. Em muitos casos esta influência se manifesta na tentativa de repetir atitudes consideradas positivas. […]”. (CUNHA, 2004, p.160).

Figura 3 – Escola Kaxarari 2.

Fonte: Dados do estudo.

Mas, o que marca a docência que caracterizamos como inesquecível? Como estas lembranças permanecem nas mentes apesar dos anos? Entendemos que a relação afetividade e cuidado, estão diretamente ligada às práticas de educar: “A minha professora ia em uma bicicleta para a escola, lembro que ela levava merenda de sua casa para a escola para os alunos. O sacrifício era grande, muitas vezes ela ia em uma cidadezinha mais próxima, uns 30 km de bicicleta só para buscar merenda para nós […]”. (KAXARARI, 2021, p. 1).

Figura 4 – Infância na Escola Kaxarari.

Fonte: Dados do estudo.

Este gesto da professora nos lembra as lições freireanas que “Ensinar exige querer bem aos educandos” (FREIRE, 1986, p. 89), onde a amorosidade não está separada do trabalho formativo. Confirma, portanto, que, “As práticas pedagógicas que se constituem a partir da relação professor-aluno promovem a construção do conhecimento e também vai marcando afetivamente a relação com o objeto a ser conhecido. […]”. (LEITE; TAGLIAFERRO, 2005, p. 258). E, talvez por isso a educação formal fazia sentido, a escola era um local desejado que as crianças faziam questão de frequentar porque ali podiam aprender:

[…]. E a gente mesmo indo a pé para a escola íamos contentes. Voltávamos debaixo de um sol quente, mas não desistíamos das aulas. Ao chegar a 4ª série parei de estudar devido não haver professor na aldeia, mas foi com ela que aprendi a ler e a escrever. Se hoje estou cursando uma faculdade foi graças a ela, Rosinalda Said de Souza Kaxarari. (KAXARARI, 2021, p. 1). 

De acordo com Zabala (1998) a construção de significados para os saberes escolares estão intimamente relacionados ao trabalho docente, discente e os conteúdos. Saber o que o estudo significa na atualidade mobiliza um conjunto de esforços para alcançar os objetivos educacionais.

Assim, o relato analisado apresentou elementos importantes para pensar a Educação Escolar Indígena de Rondônia e mais especificamente, aspectos educacionais do contexto Kaxarari. E nesta direção, contribuiu para a Didática Intercultural porque possibilitou conhecer aspectos dos processos pedagógicos presentes na relação discência/docência com a definição e homenagem à uma professora inesquecível.

E, apesar das difíceis condições físicas da estrutura, a distância para estudar e a falta de suporte referente à alimentação escolar, as lutas da comunidade Kaxarari por meio de esforços de crianças e adultos, foram importantes para assegurar o ingresso em níveis cada vez mais crescentes nas aprendizagens formais e cidadãs, esta última expressa no reconhecimento do trabalho docente de Rosinalda Kaxarari por meio deste texto homenagem.

Considerações Finais

Neste texto elaboramos um relato de experiência reflexivo a partir do tema “Meu professor ou professora inesquecível”. A atividade foi produzida durante o desenvolvimento da disciplina Didática Intercultural: processos de ensinar e aprender que ocorreu no segundo semestre da etapa remota de 2021. A finalidade do trabalho foi refletir as relações professor (a) e aluno (a) e suas repercussões para as aprendizagens.

Trata de uma reflexão da maior importância para as relações humanas porque possibilita o conhecimento de subjetividades formativas em dialogia com os saberes escolares, a amorosidade da qual fala Paulo Freire, imprescindível na relação docência/discência. Um fator de tamanha relevância para o presente e com possibilidades de repercussão futura, mediatizado pelas memórias.

Foi possível compreender a importância da professora Rosinalda Kaxarari no começo das aprendizagens escolares na Aldeia Pedreira, Terra Indígena Kaxarari em Porto Velho, Rondônia. A narrativa estudantil disponibiliza importantes elementos para a compreensão da Educação Escolar Indígena em Rondônia no âmbito da Alfabetização, História e Didática Intercultural.

Referências

ABRAMOVICH, Fanny. (Org.) Meu Professor Inesquecível. 3 ed., São Paulo: Gente, 1997.

BRASIL. Referenciais para a formação de professores indígenas. Brasília: MEC: SEF, 2002.

CUNHA, Maria. Isabel da. O bom professor e sua prática. 16. ed., Campinas: Papirus, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.  26. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

CUNHA, Maria Isabel da. Conta-me agora!As narrativas como alternativas pedagógicas na pesquisa e no ensino. Revista Faculdade de Educação, v. 23 n. 1-2 São Paulo jan./dec. 1997.

LEITE, Sérgio Antônio da Silva; TAGLIAFERRO, Ariane Roberta. A afetividade na sala de aula: um professor inesquecível. Psicologia Escolar e Educacional, v. 9, n. 2, p. 247-260, 2005.

MELLO, Neymia Oliveira, at al. A Educação Escolar Indígena no Município de Atalaia do Norte – AM: organização, qualidade e funcionamento. Anais III Seminário Internacional em Sociedade e Cultura na Pan-Amazônia. UFAM, Manaus (AM), novembro de 2018.

ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Penso, 2014.


* Estudante indígena do Curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural – Universidade Federal de Rondônia. geovanekaxarari@gmail.com

** Docente no Curso Licenciatura em Educação Básica Intercultural Universidade Federal de Rondônia joseliagomesneves@gmail.com

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