Gilberto da Silva
Em um primeiro momento assistir a película O Declínio do Império Americano pode levar ao expectador de primeira viagem a pensar que o filme trata apenas de um longo e quase interminável diálogo sobre sexo e infidelidade, mas a narrativa é muito mais que uma simples guerra dos sexos. Le déclin de l’empire américain (O declínio do império americano) é um filme canadense do gênero comédia dramática, dirigido por Denys
Arcand que alcançou um grande sucesso ao ser lançado na década de 80. Realizado em 1986, O Declínio do Império Americano, o filme foi considerado inovador e bem recebido pelo público e pela crítica da época.
Numa casa de campo, às margens do Lago Memphremagog, nos municípios do leste de Quebec, os professores universitários – a maioria professores de História da Universidade de Montreal; Rémy, Pierre, Claud e Alain conversam sobre traições, suas aventuras amorosas, sexo de forma quase obsessiva, política e vida universitária enquanto preparam um jantar. Suas parceiras professoras Domenique, Louise, Diane e Danielle discorrem
sobre suas intimidades, seus medos do envelhecimento, flacidez, obesidade e relações amorosas e sexuais enquanto praticam exercícios em uma academia de ginástica. Enfim, os oito acadêmicos passam uma noite discutindo abertamente sobre vida, amor, sexo, e destas conversas surgem as verdadeiras identidades de cada personagem. O embate intelectual, numa primeira inferência teórica, pode levar a relacionarmos com o conceito dos campos de Bourdieu e de como um microcosmo social dotado de certa autonomia, de um local de luta, de um espaço de poder, de tensão, um fenômeno em constante confronto e movimento. No filme, são intelectuais que se falam, formulam, escolhem, discutem e contam suas intimidades. a história se passa no universo da intelligentsia. Também pode
ser aplicável a leitura bourdieusiana de habitus social, ao entrar no campo (privado) das relações entre homens e mulheres, da ação individual agindo sobre o social. O filme pode deixar uma pergunta: agindo (os personagens) desta maneira as reflexões filosóficas seriam uma aposta mais eficaz do que a luta de classes?
A mentira e a hipocrisia estão presentes nos diálogos que nos situam nas complexidades políticas e comportamentais dos anos 80, período pré-Aids, pré-queda do Muro de Berlin, de relativa liberdade sexual, traições e jogos de poder na relação professor-aluno.
O que assistimos depois da metade do filme é um embate entre estes dois grupos (mulheres e homens) quando se encontram para um jantar. A conversa que segue nos faz perceber o clima dos anos 80, onde várias teorias que explicavam o mundo começam a cair por terra. Um dos professores declara que a busca da felicidade individual é mais importante do que o coletivo. O coletivo é sinal da decadência de uma civilização. Os
protagonistas realizam uma verdadeira autoavaliação ao discutirem sobre os mais variados temas, entre eles moral, liberação sexual, valor da intelectualidade, conhecimento, liberdade, entre outros. o que mostra que se tornou a principal preocupação da sociedade, em detrimento dos valores morais ou do casal. Uma forma original de montar o “declínio” da sociedade americana (ou mesmo da sociedade ocidental em geral).
O tom preconceituoso é revelado na relação com o professor africano que está de passagem pela universidade. É caracterizado pelas mulheres de forma sexualizada e até animalesca. E também com as garotas orientais “tenho a sensação que vou deixar meu dinheiro com irmãos dela”, “não as consigo ver ontologicamente perversas”
Os personagens e suas características
• Alain é um jovem retratado como um aprendiz, “da geração dos idiotas visuais”, cheio de frescor e ilusões nas artes do sexo e não por acaso manterá relação com uma professora mais velha.
• Mario é o “ponto fora da curva” representação do “homem selvagem”, o não intelectual, o macho/sexo. É o proletário que no final, o diretor faz crer que não é totalmente desprovido de cultura pois dá à namorada um livro de Michel Brunet.
• Remy – para quem a “subida de mulheres ao poder sempre esteve ligada ao declinio” – é um viciado em sexo, uma pessoa que é capaz de ficar longe de casa conjugal para ir ver uma amante e fazer uma escala no caminho para transar com uma prostituta. No entanto, ele ama sinceramente a esposa, mas o apelo ao sexo é o mais forte.
• Claud é o homossexual do grupo, mora sozinho e adota comportamentos de risco, vai pegar no parque no meio da noite para trazer suspeitos para casa. Urina sangue e fica se perguntando se ele não tem aids.
• A jovem Danielle, estudante de história, vive uma relação complicada com Pierre, muito mais velho, e para financiar seus estudos trabalha em uma casa de massagens.
• Pierre – que em determinado momento declara qua a “familia” são eles”, foi casado no passado e não quer mais cair na armadilha do casal tradicional. Está apaixonado por Danielle mas ele está ciente da diferença de idade deles e do fato de que ele não pode e não quer oferecer a ela o que ela deseja, uma vida estável com filhos.
• Diane experimentou a aventura do casal e quebrou os dentes ali. Parando a carreira, casou, fez filhos e tudo deu errado. Ela tem dificuldades financeiras, tornou-se ninfomaníaca e tem um caso sadomaso com Mario, sujeito meio estúpido que a brutaliza.
• Louise se considera a mulher perfeita, a mãe de família e esposa ideal, sem saber que o marido já a traiu em várias circunstâncias.
• Dominique vive sozinha, sem marido, sem filhos. Dominique é autora de um livro sobre a felicidade e afirma que na história, em todos os tempos, o advento da felicidade pessoal dos indivíduos destrói a noção do bem comum e coincide com a decadência das sociedades, enquanto os homens notam que a chegada das mulheres ao poder também é sintomática disso. Na entrevista inicial no filme afirma que o casamento em sociedades estaveis é um modo de troca econômica. “eu ponho a seguinte questão paradoxal: este impulso exacerbado pela felicidade pessoal que vemos na sociedade atual não está ligado ao declínio do império americano que começamos agora a viver?” questiona na entrevista do início do filme.
Não há vencidos nem vencedores ao final deste duelo entre os homens e mulheres, Arcand descreve um universo fechado, quase sem saída. O que de imediato pode irritar aquele que deseja um filme mais propositivo, nem é sexista, nem misógino como uma leitura leviana possa interpretar e nem antiintelectual.
Para além das análises feitas sobre o filme, hoje fica evidente que o autor retratou uma situação de classe weberiana
certo número de pessoas tem em comum um componente causal específico em suas oportunidades de vida, e na medida em que este componente é representado exclusivamente pelos interesses econômicos da posse de bens e oportunidade de renda, e é representado sob as condições de mercado de produtos ou mercado de trabalho (Weber, 1974, p. 212)
Pode-se interpretar O Declínio do Império Americano, como um chamamento aos intelectuais para deixarem definitivamente as quimeras e os discursos vazios, afinal tal como a fala inicial da aula de Remy: “a História não é uma ciência moral…” O desdobramento deste enredo será feito no filme seguinte de Arcand, As Invasões Bárbaras (2003), quando o campo do social vem à tona, mas isso fica pra outra resenha.
Referências
Weber, Max. Classe, Estamento, Partido in Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
Filme
O Declínio do Império Americano (Le Déclin de l’Empire Américain, Canadá, 1986). Gênero. 101 minutos. Estúdio: Malofilm / Corporation Image M & M / National Film Board of Canada / Téléfilm Canada / Société Général du Cinéma du Québec / Societe Radio Cinema. Distribuição: Cineplex-Odeon Films / Art Films. Direção: Denys Arcand.
Roteiro: Denys Arcand. Produção: Roger Frappier e René Malo. Música: François Dompierre. Fotografia: Guy Dufaux. Desenho de Produção: Gaudeline Sauriol. Direção de Arte: Gaudeline Sauriol. Figurino: Denis Sperdouklis. Edição: Monique Fortier. Efeitos Especiais: Les Productions de l’Intrigue Inc.
Gilberto da Silva é editor da revista Partes