Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha.
Annie Ernaux
Por Margarete Hülsendeger
Em 2022, Annie Ernaux foi laureada com o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se a primeira mulher francesa a receber essa honraria. A Academia Sueca justificou essa escolha declarando que a escritora francesa fez jus ao Prêmio “pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”. Mesmo que o prêmio tenha chegado apenas agora, todos os adjetivos utilizados pelos membros da Academia para descrever a obra da autora francesa já estavam presentes, em 1984, no livro intitulado O lugar[1] (em francês La Place) pelo qual recebeu, no mesmo ano, oPrêmio Renaudot, uma das premiações literárias mais importantes da França.
Na capa do livro, publicado no Brasil pela editora Fósforo, há uma foto, em preto e branco, de um homem de terno e gravata, encostado de forma displicente em um carro, com uma das mãos dentro do bolso da calça enquanto o outro braço parece abraçar o veículo. Ele olha direto para a câmera, com um esboço de sorriso, e dá a impressão de não estar à vontade em ser fotografado. Esse homem é o pai de Annie, morto exatamente dois meses depois da filha ter sido aprovada no exame para professora. Ele tinha 67 anos e, segundo a autora, sempre viu com desconfiança o fato de ela gostar de pensar e refletir.
Mais do que uma história sobre a infância e a adolescência de Ernaux, O lugar fala sobre como a visão da figura paterna se transforma conforme crescemos e amadurecemos. Para conseguir escrever, a autora diz ter se libertado, de saída, de um “ponto de vista artístico”, rejeitando qualquer proposta que implicasse ser “cativante” ou “comovente”. Ela afirma que precisou adotar uma escrita neutra, a mesma que usava para escrever as cartas que enviava aos pais contando as novidades. Ao lê-la, no entanto, o que menos sentimos é “neutralidade”, apesar de ela se esforçar em manter uma certa distância emocional dos acontecimentos que marcaram a sua primeira juventude. Um esforço que, muitas vezes, se perde quando ela fala do pai.
Isso fica evidente quando a autora opta por começar a história pelo fim, ou seja, pelo momento que a mãe desce a escada, enxugando os olhos, para informar que o marido está morto. Toda a primeira parte é dedicada a descrever as providências tomadas para o velório e o enterro: a missa, os convites e a escolha das roupas para as cerimônias fúnebres. E mesmo as descrições seguindo uma espécie de ordem, é evidente o choque e a angústia de Annie quando percebe que o pai não estará mais presente em sua vida. Por esse motivo, só meses depois ela pensou que precisava escrever sobre o pai e a distância que, a partir da adolescência, passou a existir entre eles. E para fazer isso ela não quis recorrer a “memórias poéticas” ou a “ironias grandiloquentes”.
Com essa decisão tomada, ela começa a narrar as origens dos pais, pessoas simples, moradores de um vilarejo na região do Pays de Caux, na França. O pai, por exemplo, para conseguir frequentar a escola, precisava percorrer dois quilômetros a pé e quando chegava sofria com a inspeção do professor em busca de piolhos e o ocasional golpe, com a régua, na ponta dos dedos para inspirar respeito. Esse período escolar, porém, não durou muito porque aos doze anos foi tirado da escola, pela família, para trabalhar no campo. Quando conheceu a mãe de Annie ele já havia abandonado a “cultura”, expressão usada para falar sobre o trabalho na terra, para se tornar um operário. Segundo a esposa, ele era um homem alto, moreno, de olhos azuis, com postura reta, que “nunca se comportou como um homem da classe operária”.
A mãe de Annie, por outro lado, aparece como uma mulher cheia de vida, audaciosa, que se esforçava em imitar as roupas das revistas de moda. Mas quando descreve a foto de casamento, observa que nenhum dos dois sorri. Essa falta de demonstração de afeto será uma das características destacadas por Ernaux, chegando a dizer que quando o pai ia dar um beijo na mãe “batia a cabeça de forma rude em sua bochecha, como se fosse uma obrigação”. Segundo ela, ele teria aprendido que a condição essencial para não reproduzir a miséria dos pais era “não se deixar controlar por uma mulher” (grifos da autora).
Esse olhar, em aparência analítico, quase clínico, com o qual a autora descreve a relação dos pais, também aplica ao relatar seu relacionamento com eles. A pobreza dos anos pós guerra e o esforço em driblar as dificuldades mais básicas do dia a dia constitui a parte mais intensa das lembranças de infância de Ernaux. O empenho em melhorar de vida, trabalhando todos os dias, com horas contadas para o descanso, mescla-se com um sentimento de “falta constante, sem fim”. Contudo, de acordo com ela, esse empenho, na maioria das vezes, era apenas o desejo pelo desejo porque, no fundo, eles não sabiam o que era belo ou o que deveria ser apreciado, desconhecendo, inclusive, “a ideia de que as pessoas escolhem objetos para ter em casa”.
É nesse ambiente de saber que “tudo custa caro” ou o que “vão pensar da gente?” que Annie cresceu. Quando narra essas situações percebe estar usando várias vezes o “nós”, pois diz ter pensado como eles durante muito tempo. Entretanto, em determinado momento, ela reconhece que uma linha divisória apareceu entre ela e os pais. Seu quarto se transformou em um refúgio onde lia, estudava e ouvia música, aparecendo apenas para as refeições, feitas em absoluto silêncio. Nesse período, passou a ser irônica e a sentir que tudo que a perturbava vinha “de um lugar desconhecido”. O resultado de todas essas mudanças foi o esperado: os pais entraram para a categoria das “pessoas simples ou modestas ou boas”. Pessoas para as quais o verbo trabalhar “só podia ser usado para se referir ao trabalho braçal” ou que viam os estudos como um sofrimento necessário para se ter uma certa condição e “não acabar como um operário”.
Quando começou a se afastar da família, Annie acreditava que o pai já não podia fazer mais nada por ela e reconhece que talvez tenha começado a escrever porque “já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro”. Até o final do livro, suas reflexões sobre o pai nos levam a vê-lo como um homem que, apesar da simplicidade e rudeza, foi uma personalidade marcante na maneira de Annie perceber e analisar o mundo. Portanto, afastar-se do convívio paterno não impediu que trouxesse consigo muitos de seus preconceitos e ideias. Ela recorda que se envergonhava da forma como o pai tratava suas amigas, sempre desejoso de dar a impressão de dominar as regras de uma classe que considerava superior. Como ela conta, um dia, “cheio de orgulho no olhar, ele me disse: ‘Eu nunca te fiz passar vergonha’”.
Ler O lugar nos obriga a pensar em nosso próprio lugar. Perceber que todos, de uma forma ou outra, somos o reflexo de nossos pais. E mesmo que procuremos nos distanciar dessa verdade, conforme envelhecemos mais nos aproximamos dela. O mesmo olhar de fastio com o qual um dia olhamos para os nossos pais vemos refletidos nos olhos de nossos filhos e, mais tarde, de nossos netos, como se, de repente, a roda tivesse girado e estivéssemos de volta ao ponto de partida. Por isso, para Annie Ernaux escrever se tornou uma forma de lançar luz sobre fatos esquecidos, tarefa nada fácil porque, como ela diz, a “memória se mostra resistente”. O lugar vale uma leitura atenta porque todos fomos filhos e todos podemos ser, ou já somos, pais e entre muitas das nossas lembranças envergonhadas, ou sombrias, também existem aquelas capazes de iluminar toda uma vida.
[1] ERNAUX, Annie. O lugar. Tradução Marília García. São Paulo: Fósforo, 2021.