Por Alceu Alves, vice-presidente da MV
Foi em 27 de dezembro de 2018, há apenas quatro anos, que podemos oficialmente comemorar a regulamentação do Prontuário Eletrônico do Paciente, ou PEP, estabelecido pela lei conhecida como Lei do Prontuário Digital (no 13.787/2018). No entanto, vale salientar que os esforços para estabelecer este, que podemos considerar como o cerne da saúde digital, foram morosos — e me atrevo a dizer — tanto quanto o é a própria digitalização da saúde.
Devemos lembrar que foi graças ao empenho em modernizar o trabalho das unidades de saúde e facilitar o acesso às informações de pacientes que surgiu o conceito de prontuário eletrônico, cujo modelo de documento foi delimitado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2002 — veja, há exatos vinte anos. Não quero, de forma alguma, desmerecer todo o trabalho que foi feito até agora — aliás, longe disso. Minha relação com a MV começou há cinco bons anos, mas o meu relacionamento com hospitais e com o cuidado com o paciente teve início em 1977. Tenho, portanto, propriedade em dizer que, do ponto de vista de prontuário do paciente, evoluímos enormemente. Assim, antes de podermos discutir o futuro do PEP em território nacional, queria relembrar alguns eventos importantes desta linha do tempo, que eu costumo dividir em quatro fases. A primeira delas, claro, tem a ver com a adoção do PEP por instituições Brasil afora.
Tive a oportunidade (e o privilégio) de acompanhar o surgimento desta tecnologia, em substituição ao que antes era feito de maneira completamente manual — da prescrição às questões processuais, como movimentações na farmácia e demais áreas que acompanham o paciente desde o momento da entrada no hospital até a alta.
O ponto fundamental que o PEP endereçou com louvor neste contexto foi o fator “risco”.
Com todos os processos manuais, dá para imaginar a insegurança que isso refletia no cuidado assistencial: da ilegibilidade de registros e perda de informações, ao risco de exames serem feitos com atrasos, de medicação aplicada fora da exatidão necessária em tempo para o cuidado com o paciente e, até mesmo, o risco especialmente crítico de uma prescrição inadequada de medicamentos que eventualmente pode levar a óbito.
Estes últimos pontos, aliás, são desafios críticos no dia a dia da assistência médica e que persistem ainda hoje, como aponta um recente estudo liderado pelo Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), publicado em agosto deste ano no periódico PLOS ONE. De acordo com o levantamento, em média, 10% dos pacientes internados em hospitais sofrem com eventos adversos relacionados a erros de medicação (EM).
Além do impacto econômico global causado por EM que chega a consideráveis US$ 42 bilhões anuais (ou 0,7% do gasto total mundial em Saúde), o ponto mais importante da análise é: metade desses erros são evitáveis.
Dos hospitais da América Latina pesquisados, um montante entre 2,5% e 18,4% das internações hospitalares estavam associadas a eventos adversos; destas, 84% eram evitáveis e outros 30% resultaram em óbito — número elevado e inadmissível, sobretudo se considerarmos que tais ecossistemas poderia facilmente ser controlados por meio do uso do PEP.
Mais adiante, a prescrição eletrônica ganha espaço e maturidade — um marco para a segurança assistencial e que crava a segunda fase da implementação do prontuário eletrônico. Hoje, ninguém faz faturamento sem prescrição eletrônica e ela passou a ser vista como base fundamental em termos de segurança e qualidade assistencial.
Do ponto de vista administrativo, consigo estabelecer uma série de controles e sub controles que passam a adentrar esse novo mundo e permitir a mensuração de importantes indicadores como: horário do medicamento, verificação de informações com relação aos pedidos médicos, ou seja, se tudo o que foi solicitado foi de fato executado etc. Tenho, hoje, em minhas mãos informações precisas sobre questões assistenciais — e isso é de uma riqueza ímpar no apoio médico, no suporte à saúde e à segurança do paciente. Apesar disso, ainda não ultrapassamos esta segunda fase por completo, apesar de já iniciada a terceira fase, que envolve duas questões nevrálgicas: escalabilidade e interoperabilidade. Avançamos muito, mas ainda não de forma satisfatória em nenhuma das duas frentes.
Essa terceira etapa envolve, principalmente, lideranças da área da saúde — em especial uma atuação mais afiada do Ministério da Saúde. Já deveríamos ter o PEP estabelecido no Brasil há tempos e uma das minhas crenças pessoais é de que isso não aconteceu por questões técnicas: sempre que alguém assume a pasta, acontece algo que a impede de avançar.
Não ultrapassar essa fase significa, na prática, onerar enormemente o sistema de saúde, encarecendo, inclusive, o contexto privado, que passa a seguir os mesmos passos lentos e insuficientes do setor público.
A liderança aqui, no caso representada pelo Ministério, é fundamental e precisa agir com determinação, institucionalizando obrigatoriedades que abrangem a todos, entre elas posso citar que todo cidadão brasileiro deve ter o prontuário eletrônico, e todo sistema de saúde deve ser desenvolvido já considerando a interoperabilidade.
Podemos, enfim, falar sobre a quarta e última fase, que é adicionar mais inteligência e tecnologia aos processos, tornando-os ainda mais automatizados de forma a auxiliar médicos e profissionais da saúde em eficiência e assertividade. Por exemplo: já existe hoje uma tecnologia que permite ao usuário falar com um assistente virtual e este, por sua vez, realiza uma tarefa. Mas essa mesma tecnologia não pode ser usada pelo médico para prescrever medicamentos sob o risco de prescrição incorreta.
A tecnologia de voz poderia ir além e ser usada em cirurgias, por exemplo, onde o cirurgião poderia narrar o andamento de todo o processo por completo, para que ele seja prontamente adicionado ao PEP do paciente. Assim, quando finalizado o procedimento, depois de horas de cirurgia, o médico responsável não precisaria, então, perder outros tantos minutos preciosos de seu tempo fazendo o relatório cirúrgico, citando justamente tudo o que acabou de realizar, porque tal documento já estaria pronto.
Bastaria apenas assinar e está feito. Não seria maravilhoso? Eu digo que sim e duvido que alguém discordaria disso. As possibilidades são vastas, mas o fato é: todos falam das maravilhas da tecnologia, mas esquecem de que não temos o básico bem-feito, sem fragmentação, sem entraves.
Corrigir isso é importantíssimo para estabelecermos uma base sólida e continuarmos a caminhada. A quarta fase sequer iniciamos e está longe de ser concretizada. Fora a liderança engajada, também é preciso ter um propósito que abrace o coletivo e dê direcionamento. A meu ver, hospitais e demais instituições e players que compõem esse ecossistema devem abraçar essas questões primordiais que citei acima e ainda precisam ser alimentadas. Iniciativas como o Projeto de Lei 3814/20, em discussão no Congresso Nacional e cujo objetivo é levar a uma integração de dados na saúde e ao prontuário eletrônico único, é apenas uma das ferramentas que podemos considerar quando se trata de elaborar caminhos para o PEP ganhar ainda mais robustez e escala.
Parabenizo os envolvidos, que de toda e qualquer forma, participaram das primeiras fases desta transformação digital. Agora, acredito que o foco deva ser em olhar para o futuro, fomentando as próximas duas décadas em prol de articulações que possam, enfim, fazer jus à revolução que o PEP trouxe e ainda pode fazer pela saúde como um todo.