Gente branca acreditava que, fossem quais fossem as maneiras, por baixo de toda a pele escura havia uma selva.
Toni Morrison
Por Margarete Hülsendeger
Em Pequeno Manual Antirracista, Djamila Ribeiro afirma: “…quando eu conheço uma cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se informar”. Do mesmo modo, ela explica que a leitura de autores/autoras negros não deve se basear em uma visão essencialista, ou seja, “na crença de que devem ser lidos apenas por serem negros”. É preciso entender que as pessoas negras, tanto quanto as brancas, elaboram e, portanto, constroem o mundo, não estando à margem dele.
Quando reflito sobre as palavras de Djamila percebo quão pouco conheço obras de autoria negra. Obras que, com certeza, me ajudariam a compreender melhor a história, não só do meu país, mas de tantos outros onde a população negra, mesmo sendo maioria, é sistematicamente silenciada. Por isso, há algum tempo, empreendi uma busca de autores/autoras negros que me levou a nomes importantes da nossa literatura: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Jefferson Tenório, Eliane Alves Cruz e a própria Djamila Ribeiro, para só mencionar aqueles que já tive a oportunidade de ler. Fora do Brasil, no entanto, meu conhecimento ainda é bastante incipiente, pois minhas leituras se restringem, até o momento, a Chimamanda Ngozi Adichie, a bell hooks[1] e a Toni Morrison.
Reconhecer que apenas há pouco tempo li obras dessas três grandes escritoras e ativistas dá a dimensão da minha ignorância quando se trata de conhecer obras de autoria negra. Sobre bell hooks escrevi recentemente um texto sobre uma de suas obras mais conhecidas, O feminismo é para todo mundo, onde apresento algumas de suas ideias sobre as ações necessárias para fazer frente à violência patriarcal[2]. Sua morte em 2021 foi uma grande perda para os movimentos feministas, porém, como disse no texto que escrevi, “seu legado permanece impelindo mulheres de todas as idades, cores e origens a continuar lutando contra o patriarcado e o despotismo”.
Toni Morrison também foi uma descoberta maravilhosa! Resolvi começar a conhecê-la por aquela que é considerada sua magnum opus, ou sua obra prima, Amada (Beloved, em inglês)[3], publicado em 1987. Mesmo que antes desse romance ela já tivesse publicado O olho mais azul (1970) e Song of Solomon (1977), foi Amada que lhe garantiu o Prêmio Pulitzer de melhor romance e o reconhecimento, pelo The New York Times, como “a melhor obra de ficção americana dos últimos 25 anos”.
Apesar da leitura ter sido uma experiência apaixonante, escrever sobre Amada não é uma tarefa simples, principalmente, porque a própria autora, em um prefácio, encarrega-se de traçar a genealogia da obra. Assim, é por Morrison que ficamos sabendo que a história é baseada em um fato real: a prisão de uma jovem escrava, Margaret Garner, “por matar um de seus filhos (e tentar matar os outros), para impedir que fossem devolvidos à plantação do senhor”. Do mesmo modo, Morrison explica que, apesar de a Margaret histórica ser fascinante, também era, para um romancista, “limitadora”. Por isso, decidiu inventar seus pensamentos, prendendo-os a um “subtexto que fosse historicamente verdadeiro em essência, mas não estritamente factual”. Morrison queria que Amada também abordasse questões mais contemporâneas, como a “liberdade, a responsabilidade e o ‘lugar’ da mulher’”. E ela consegue tudo isso e muito mais.
O universo de Amada mistura a dura e horrenda realidade da escravidão com uma atmosfera onírica onde há uma casa habitada não só por um fantasma, mas por pessoas de carne e osso que se veem atormentadas por lembranças das quais não conseguem se desprender. A casa, apesar de ser identificada apenas por um número, 124, tem um papel fundamental na história; daí o romance iniciar com as frases: “O 124 é rancoroso. Cheio de um veneno de bebê”. Nela, um crime ocorreu; nela, três mulheres vivem (ou sobrevivem) tentando superar o horror de um acontecimento que marcou a todas de maneira decisiva. Nela, contudo, também há espaço para eventos fantásticos não explicados ou justificados pela autora, mas que o leitor aceita como parte desse universo estranho e misterioso.
Além da casa, também há as histórias de seus moradores. Histórias que vão sendo contadas aos poucos, eu diria que a conta gotas, obrigando o leitor a seguir “uma paisagem repelente (oculta, mas não completamente; deliberadamente enterrada, mas não esquecida)”. No 124 vivem, durante um tempo, a avó, Baby Suggs, a mãe, Sethe e a filha, Denver, todas imersas em seus próprios conflitos e memórias excruciantes. Sabedoras do quão perigoso é amar, decidem que a “melhor coisa era amar só um pouquinho, de forma que quando se rompesse [o amor], ou fosse jogado no saco, bem, talvez sobrasse um pouquinho para a próxima vez”. Paralelo ao 124 há a lembrança de um outro espaço no qual parte da narrativa se desenrola. Uma fazenda chamada, ironicamente, Doce Lar
Foi da Doce Lar de onde todos os personagens vieram e onde muitos deles desapareceram. Um lugar que, mesmo quando deixou de existir, permaneceu na memória daqueles que lá viveram porque o traumae o desespero tornaram “aquele lugar de verdade”. Por isso, Sethe, a personagem que representa Margaret Garner, diz à filha Denver que ela jamais deve conhecer Doce Lar, pois se o fizesse todo o vivido e experimentado estaria esperando por ela. Não há como apagar o que foi feito; ele permanece, segundo Sethe, como um “quadro flutuando” sobre a cabeça de todos, independente da passagem do tempo.
O 124, em comparação à Doce Lar, tornou-se, então, “uma casa cheia de sentimentos, talvez porque não lembrasse da perda de nada”. Mas, nesse espaço que deveria ser um refúgio, o indizível também deixou sua marca. E é nele que o fantasma bebê vive. Ele habita a casa, brinca com Denver e sente ciúmes de Sethe. Um fantasma que volta à vida quando se sente ameaçado pela presença de um estranho, Paul D., o último homem da Doce Lar.
A partir do momento em que o fantasma reaparece na forma de uma linda jovem, chamada Amada, a vida no 124 muda completamente. Paul D. abandona a casa, Sethe passa a viver em função da filha rediviva e Denver, depois de anos de isolamento, vê-se obrigada a sair para o mundo. Em meio a essas tensões ficamos sabendo o que aconteceu com Sethe na Doce Lar, o que Paul D. foi obrigado a suportar em um campo de trabalho, de como Denver se sentia em relação às ações da mãe e como a presença de Amada despertou sentimentos desencontrados em todos os que tiveram contato com ela. Como explica Morrison, a figura central precisava ser a assassinada, “aquela que perdeu tudo e não tivera nenhuma opção”. O resultado é que o ambiente do 124 se torna ainda mais rancoroso, mais fechado, um “brinquedo de espíritos e lar dos esfolados”.
Amada é um texto complexo, com uma história que vai além dos conflitos de uma família de escravizados. Amada é o retrato de uma época, de uma sociedade, de um pensamento que faz emergir o que existe de pior na natureza humana. Amada, de Toni Morrison, Prêmio Nobel de Literatura, é uma leitura necessária porque vai na contramão do que Chimamanda Ngozi Adichie chamou de “história única”. Para Chimamanda, é preciso conhecer muitas histórias, pois se elas têm o poder de despedaçar a dignidade de um povo, também têm a força de reparar essa indignidade despedaçada. Leia Amada, de Toni Morrison, e aprenda uma outra história, uma muito diferente daquela que você se acostumou a ouvir.
[1] O nome é escrito em minúsculas por decisão da própria autora. Segundo ela, é o conteúdo de sua obra, e não o seu nome, que deve ser relevante.
[2] https://www.partes.com.br/2022/10/09/o-feminismo-e-para-todos/.
[3] MORRISON, Toni. Amada. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
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