RESENHA
A vida de Bocage: sátira, censura, pobreza
Ademir Demarchi (*)
Para investigar a vida de Bocage em suas minúcias, Adelto Gonçalves percorreu todas as biografias e estudos importantes sobre o autor
I
“Bocage, alistado na Marinha, cursou a respectiva Academia, embarcou para a Índia, foi boêmio no Rio de Janeiro, passou três anos em Goa e Damão, desertou fugindo para Macau, regressou a Lisboa, onde a vida livre e as sátiras o atiraram para a prisão e o hospício. Morreu doente e pobre, traduzindo nos seus versos a sua vida e o seu tempo”.
Essa síntese da vida de Bocage (1765-1805), feita no prefácio de Bocage, o Perfil Perdido pelo professor catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa, Fernando Cristóvão, bem caberia em similaridade àquela feita por Nabokov sobre um personagem no início de seu romance Gargalhada na escuridão, em relação à qual o escritor russo acrescenta: “Eis aí toda a história, e bem poderíamos abandoná-la neste ponto, se não houvesse vantagem e prazer em contá-la. Embora haja espaço mais do que suficiente numa pedra tumular para conter, encadernada em musgo, a versão resumida da vida de um homem, os pormenores são sempre bem recebidos”.
É o que faz o professor e escritor Adelto Gonçalves ao investigar a vida de Bocage em suas minúcias, percorrendo todas as biografias e estudos importantes sobre o autor, cotejando e contrapondo-os às suas novas descobertas e correções oriundas de exaustivas pesquisas em arquivos e fontes primárias como trabalho de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo (USP), que teve sua primeira edição em 2003, em Portugal, pela Editorial Caminho, de Lisboa, e que agora sai em nova edição, com excelente projeto gráfico e ilustrações, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
A vida do poeta português, propagandeada pelo senso comum como “agitada e de boemia” em geral para promover seleções mais vendáveis de sua poética, se decompõe nessa biografia quando a acompanhamos inserida em detalhes na sociedade da sua época histórica e cultural que, agitada e contraditória, se expressa na obra de Bocage transitando do neoclassicismo das Arcádias aos primeiros momentos do romantismo.
II
Pode-se dizer que, mais que boemia, o que fez Bocage foi sobreviver em miserabilidade, passando por punições, prisões e fugas em meio ao período histórico em que viveu, marcado pela morte do rei d. José, pelo reinado de d. Maria I, pela onipresença e em seguida queda e afastamento do poderoso marquês de Pombal, bem como pelo jugo sofrido sob a intendência repressiva e policialesca do intendente-geral da Polícia Pina Manique, durante o reinado de D. Maria I. No contexto da Campanha do Rossilhão, também denominada Guerra dos Pirenéus ou Guerra da Convenção, campanha militar em que Portugal participou ao lado da Espanha e do Reino Unido contra a França revolucionária, Pina Manique agiu visando à repressão das ideias oriundas da Revolução Francesa, proibindo a circulação de livros e publicações e fazendo perseguição a diversos intelectuais, especialmente maçons, que ele culpava de terem conspirado a favor da revolução, e atingindo diretamente a vida de Bocage, defensor do ideário revolucionário.
Nesse contexto, já na corte, as publicações feitas por Bocage, além de negociadas nas minúcias das trocas de palavras para serem aprovadas, demandava o recurso habitual humilhante a que se submetia, de escrita de poemas laudatórios aos poderosos, tanto para facilitar a publicação de livros quanto para garantir migalhas de sinecuras para sua sobrevivência, numa existência pendular que ia da “euforia do amor e da paixão romântica à impiedade e à disforia do desespero e do arrependimento”, na ótima síntese feita no prefácio por Fernando Cristóvão.
A dificuldade de existência sob despotismo tendo-se ideias de mudança da sociedade pode ser bem descrita num dos eventos mais notáveis da Real Mesa Censória: a proibição de 122 obras e a grande fogueira feita em 1770 no Terreiro do Paço com a queima de livros de Voltaire, Bayle, Rousseau, abade Raynal, Boulanger e La Mettrie, considerados nefandos em seu ateísmo e materialismo e ameaça à religião.
Adelto Gonçalves esmiuça essa vida, contraditória pelas circunstâncias, que, se fez vivas à liberdade e à ciência, assim como sátiras violentas aos poderosos, impôs-se escrever, de forma humilhada, ode de arrependimento em gesto de perdão ao policial Pina Manique, sinalizando que “Meu ser evaporei na lida insana”, assim como, depois da subversão de ideias de inspiração francesa, decaiu na religiosidade aceita das homenagens à paixão de Cristo e à pureza de Conceição da Virgem Santíssima, finalizada com o último respiro abençoado por frei José Maria, que lhe fez o trabalho de “conforto espiritual”.
III
A pesquisa de Adelto Gonçalves, pela necessidade de esclarecimento de fatos biográficos que misturam bens patrimoniais particulares com os do Estado, bem como sinecuras e relacionamentos de familiares que repercutem na vida do poeta, compreende um traçado da árvore genealógica da família de Bocage que é pontuada pela análise escrutinada com informações primárias de arquivo, o que resulta numa compreensão excelente de como se dava a vida social naquela época e como era possível ser poeta em tal contexto.
Da análise dessa árvore genealógica saem um avô francês corsário que bandeou de sua pátria para o lado português, negócios, bens acumulados, a prisão do pai de Bocage, as relações familiares e suas negociações de subsistência, bem como a intriga em torno de uma casa de família tida como onde nasceu Bocage pelos historiadores e que, crescendo como uma personagem no livro de Adelto Gonçalves, se desmascara com as pesquisas em arquivos.
De minúcia em minúcia, o pesquisador vai percorrendo a vida de Bocage, primeiro nos rastros de Camões, depois por sua passagem pela Índia integrado à Marinha, a deserção e a fuga, o retorno a Lisboa, a expulsão do Parnaso e a convivência disputada com os poetas da época – a “guerra dos vates”, bem como as relações com personagens como o aeronauta balonista Lunardi, os amores, a aspiração à plena liberdade numa corte controladora e provinciana que o leva à prisão sob guarda do intendente Pina-Manique.
Essa autoridade policial impõe um processo de “reeducação” do poeta, que acaba coroado por loas de Bocage à família real, em um elogio dramático escrito e recitado no Teatro do Salitre. Destacam-se também as distantes relações familiares do poeta, as censuras sofridas, o trabalho de tradutor, revisor e reescritor de textos alheios, as perseguições pela Inquisição, as publicações e tiragens de livros e a morte anunciada, com a reaproximação de velhos amigos e antigos desafetos promovida por frei José Maria.
Configurando-se em uma biografia exaustiva e rigorosamente documentada, o trabalho do pesquisador analisa os embates relacionados à memória de Bocage entre seus partidários e José Agostinho de Macedo, feroz opositor, destacando-se também o relato do último período da vida do poeta em suas negociações com os censores da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura de Livros e seu trabalho na Oficina Tipográfica, Calcográfica, Tipoplástica e Literária do Arco do Cego, onde foi tradutor e revisor.
IV
Entre os livros publicados por Adelto Gonçalves, soma-se a essa biografia de Bocage, além de livros de contos e romances, a também minuciosa biografia de Tomás Antônio Gonzaga, Gonzaga, um poeta do Iluminismo, publicada pela Editora Nova Fronteira em 1999, escrita como tese de doutoramento, que ganhou o Prêmio Ivan Lins de Ensaios da União Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras.
As duas biografias, de Gonzaga e de Bocage, ao fazerem a reconstrução da vida no século XVIII, combinando história e literatura com o rigor da pesquisa em arquivos, estimulam a releitura da obra poética desses autores, de forma a compreendê-las em suas nuances, marcadas pelo contexto histórico e social, sem os clichês costumeiramente aplicados a esses poetas.
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Bocage, o perfil perdido, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Fernando Cristóvão, professor catedrático de Literatura da Universidade de Lisboa. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2021, 520 páginas, R$ 85,00. Site: https://www.editoraimprensaoficial.sp.gov.br/
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(*) Ademir Demarchi (1960) nasceu em Maringá-PR e vive em Santos-SP. Cursou Letras-Francês na Universidade Estadual de Maringá-PR (UEM), mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) em Literatura Brasileira. Editou a revista Babel, de poesia, crítica e tradução, e o selo Sereia Ca(n)tadora, de livros artesanais. É autor de Os mortos na sala de jantar (2007); Passeios na Floresta (2007); Do Sereno que Enche o Ganges (2007); Ossos de Sereia (2010); Pirão de Sereia, que reúne sua obra poética de 30 anos (2012); 101 Poetas – Antologia de experiências de escritas poéticas no Paraná do século XIX ao XX (2 vols., 2014), o livro com crônicas publicadas em jornal Siri na lata (2015), O amor é lindo, poemas (Patuá, 2016), Espantalho, ensaios(Editora Nave, 2018) e Contrapoéticas, ensaios (Editora Nave, 2020), entre outros.
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Foto: Luiz Nascimento
Adelto Gonçalves: biografia de Bocage constitui análise escrutinada com informações primárias de arquivo, que mostra como era a vida social no século XVIII e início do XIX