Se não se passou pela obrigação absoluta de obedecer ao desejo do corpo, isto é, se não se passou pela paixão, nada se pode fazer na vida.
Marguerite Duras
Margarete Hülsendeger
O que faz alguém desejar escrever sobre sua vida? Para responder a essa pergunta é preciso lembrar que as Confissões (400), de Santo Agostinho e as Confissões (1782), de Jean Jaques Rousseau, apesar de estarem separadas no tempo, tiveram o mesmo propósito: contar as vidas dos autores a partir de suas próprias experiências. O mesmo se poderia dizer de K: relato de uma busca (2014), de Bernardo Kucinski, O menino no espelho (1982), de Fernando Sabido, Confesso que vivi (1974), de Pablo Neruda e tantas outras obras focadas em explorar essa identificação entre narrador e autor. Por essa razão, nesse tipo de narrativa estará sempre presente a voz real (o Eu) que testemunha determinados acontecimentos por um viés único, fazendo disso um método a favor da possível verdade do seu relato.
É importante destacar a palavra “possível”, pois a escrita de um relato autobiográfico está sujeita as lembranças de um passado, na maioria das vezes, produto de memórias pessoais, compartilhadas e até mesmo fictícias. No entanto, é inegável que muitos autores, apesar das armadilhas que esse tipo de narrativa pode conter, conseguiram alçar a escrita autobiográfica a categoria de arte. Um desses autores é a francesa Marguerite Duras (1914-1996).
Duras nasceu em Saigon, na Indochina, na época uma colônia francesa, e lá passou a infância e a adolescência até ir para Paris, aos 18 anos, onde cursou a Faculdade de Direito, na Sorbonne. Esses anos, que compõem a sua vivência asiática, a marcaram profundamente e ela os transportou para os seus livros, detalhando o lugar em que viveu, a relação com a família, a rotina do pensionato que frequentou em Saigon, assim como descrevendo seus afetos e desafetos. Um dos livros em que estás lembranças estão presentes é O amante[1], publicado em 1984 e ganhador, no mesmo ano, do Prêmio Goncourt.
Duras inicia a obra falando do envelhecimento de seu rosto que, segundo ela, entre os dezoito e os vinte e cinco anos tomou um rumo imprevisto: “Eu o vi ganhar meus traços, um a um, mudar a relação que existia entre eles, aumentar os olhos, entristecer o olhar, marcar mais a boca, imprimir profundas gretas na testa”. Essa percepção, em vez de assustá-la, despertou sua curiosidade permitindo que ela observasse a evolução desse envelhecimento com o interesse que teria por um bom livro. Contudo, apesar das palavras, aparentemente, desprendidas, mais adiante ela escreve: “Tenho um rosto lacerado por rugas secas e profundas, a pele sulcada. […] Tenho um rosto destruído”. Uma afirmação que leva o leitor a desconfiar da indiferença que ela diz sentir quando se olha no espelho.
A essa introdução impactante segue-se a história de uma menina de quinze anos (Duras) que um dia, na volta para casa, após sair do pensionato, conhece um homem mais velho e com ele inicia uma relação que, sob muitos aspectos, servirá como uma válvula de escape para os problemas que enfrenta na família. Diversas análises da obra, assim como o filme de 1991[2] baseado nela, centram-se no relacionamento proibido entre a menina francesa e o homem que, além de ser mais velho, é chinês. E mesmo sendo verdade que Duras dedica várias páginas em descrever esse romance proibido, o livro vai além disso ou, como diz a própria autora, ele é o relato dos períodos encobertos da sua juventude, “de certos fatos, certos sentimentos, certos acontecimentos que enterrei”.
Em O amante Duras escreve sobre a família, a mãe e os dois irmãos, sem nunca citar seus nomes. Ao falar sobre a mãe, ela a apresenta como uma mulher desesperada, com um desespero tão completo que “nem mesmo a felicidade da vida, por mais intensa que fosse, chegava a distraí-la totalmente dele”. Uma mãe que, ao passar por frequentes períodos de depressão, levava a filha adolescente a se perguntar o que os provocaria: “Seria a morte de meu pai, já presente, ou a morte do dia? O questionamento desse casamento? desse marido? desses filhos? ou o questionamento mais geral de toda essa existência?”. Há na relação da menina com a mãe um misto de amor e ódio, de repulsa e carinho, sentimentos que se mesclam com os que sentia pelos irmãos, compondo uma história de decadência e morte que ela nunca conseguiu compreender.
O ódio que diz sentir pelo irmão mais velho também impressiona porque ela deixa claro que desejou sua morte inúmeras vezes: “Eu queria matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, ter razão contra ele uma vez, pelo menos uma única vez, e vê-lo morrer”. Uma declaração brutal que precisa de algum tipo de explicação e ela a dá. O irmão rouba a mãe para pagar seu vício em ópio, é violento, com uma violência, “fria, insultante” e exerce um poder obscuro sobre tudo o que acontece na família em “tudo o que chega até nós”. Não há redenção para esse irmão. Quando ela recebe a notícia da sua morte não há tristeza, apenas indiferença.
Já o irmão mais moço sofre com as agressões do mais velho e o desinteresse da mãe. É por ele, para salvá-lo, que a menina deseja a morte do irmão mais velho. Ela sonha em libertá-lo da vida imposta por esse irmão, “desse véu negro sobre o dia, dessa lei representada por ele, decretada por ele”, uma lei animal que a cada “instante de cada dia disseminava o medo na vida de meu irmão pequeno, medo que certa vez atingiu seu coração e o levou à morte”. A nostalgia e o desalento tomam conta da voz da narradora quando fala da morte do irmão mais moço na guerra. Ela lembra da única carta que recebeu dele; uma carta que ela descreve como comprida, escrita com uma caligrafia impecável e na qual ele diz que estava bem, “que tudo estava bem. Que me abraçava como me amava, bem forte”.
O amante, de Marguerite Duras, é uma narrativa relativamente curta (128 páginas) quando comparamos com outros relatos autobiográficos que ocupam às vezes diversos volumes. Entretanto, a concisão com que a autora francesa escreve sobre esses três anos de sua vida (dos 15 aos 18) valoriza ainda mais a obra porque em poucas páginas ela consegue condensar um espectro de sentimentos e emoções que impacta até mesmo o leitor mais indiferente. Aliás, em O amante não há espaço para a indiferença porque Duras transforma a tragédia de sua infância em um enfrentamento intenso da vida em sua penosa finitude.
[1] DURAS, Marguerite. O amante. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Planeta, 2020 (Edição Kindle).
[2] O filme foi dirigido por Jean-Jacques Annaud e o roteiro foi escrito por Annaud e Marguerite Duras.