Na face do velho, as rugas são letras […]
O que os livros escondem, as palavras ditas libertam.
E não há quem ponha um ponto final na história.
Conceição Evaristo
Margarete Hülsendeger
A filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro, em Pequeno Manual Antirracista [1], adverte que no Brasil tem-se mais dificuldade de entender o sistema escravocrata porque acredita-se que aqui a escravidão foi “mais branda”. Segundo ela, esse pensamento, amplamente disseminado, “paralisa a prática antirracista, pois romantiza as violências sofridas pela população negra ao escamotear a hierarquia racial com uma falsa ideia de harmonia”. Para Djamila, é essencial rompermos com esse mito tendo em mente que para “pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade”.
Uma forma de rompermos com esse modelo, que contribui para a perpetuação da opressão, é ler autoras e autores negros, pois é “danoso que, numa sociedade, as pessoas não conheçam a história dos povos que a constituíram”. Nesse sentido, o livro Água de barrela[2], de Eliana Alves Cruz é um exemplo notável de um texto poderoso, não apenas pelo valor literário, mas por sua capacidade de provocar o leitor levando-o a compreender que falar de “escravidão branda” é uma mentira habilmente construída. O que existe, nas palavras de Djamila Ribeiro, é um “sistema de opressão que nega direitos” e que tem um “caráter estrutural que pode ser paralisante”.
Água de barrela é o primeiro livro de Eliana Cruz, tendo sido publicado pela primeira vez em 2015, quando recebeu o Prêmio Literário Oliveira Silveira, oferecido pela Fundação Cultural Palmares. Nele a autora apresenta a impressionante saga de uma família negra de 1849 até 1988. A escrita dessa obra, que levou cinco anos, permitiu a Eliana descobrir suas raízes e até mesmo seu nome próprio verdadeiro. Segundo ela, a história lhe foi revelada por uma tia-avó idosa, diagnosticada com esquizofrenia, que explicou que o nome da família significa “o daquele que ajoelha para Xangô, que Xangô preenche a casa”, termo que, em iorubá, é algo como Sangonkunle[3]. Portanto, foi partindo deste testemunho, e depois enriquecendo seu texto com mais informações, que Eliana escreveu a história de homens e mulheres que sofreram as violências impostas por uma sociedade que via a cor da pele como um fator determinante da sua condição social.
A narrativa começa em 1849 com a chegada de Firmino, na verdade Akin Sangonkunle, ao Brasil depois de ser sequestrado de sua aldeia na África, em uma época na qual o tráfico de escravos já estava proibido. O horror da caçada em terras africanas e da viagem de 50 dias no mar marcaram o personagem de tal maneira que ele nunca foi capaz de superar o ódio aos homens brancos responsáveis por matarem a sua família e o arrancarem de sua terra natal. A necessidade de vingança foi o traço mais forte de Firmino, uma necessidade que o ajudou a superar os diferentes abusos aos quais foi submetido.
A partir de Firmino a autora nos apresenta uma série de personagens femininas de caráter indômito que dão o tom de toda a narrativa. Mulheres como Anolina, que aos 14 anos foi dada de “presente” a um sinhozinho para sua iniciação sexual, ou como Martha, que não mediu sacrifícios para que a filha mais velha, Damiana, pudesse estudar, porque desde cedo compreendeu que conhecimento é poder. Por sua vez, Damiana passou adiante essa ideia à filha Cecília, desejando que sua descendência tivesse melhores oportunidades, livrando-se, assim, da servidão ao homem branco. Uma servidão que, infelizmente, ainda está muito presente em pleno século XXI, porque a liberdade sonhada não veio com os mesmos privilégios e chances oferecidos aos brancos.
Água de barrela, no entanto, não é apenas uma história de família, é muito mais. Eliana Cruz narra a história do Brasil ao longo de cem anos, não deixando de mencionar fatos importantes e como eles impactaram na sociedade brasileira: a lei do ventre livre, a Guerra do Paraguai, a derrocada dos barões do açúcar, a lei Aurea, a mudança do eixo de poder do nordeste para o sudeste, a proclamação da República, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a gripe espanhola e tantos outros eventos que moldaram o povo e a nação brasileira. E em meio a esses pequenos e grandes acontecimentos a família de Firmino crescia, enfrentando a discriminação social e religiosa, com as mulheres sempre lutando com a esperança de que com a próxima geração seria diferente.
O livro de Eliana Cruz é uma daquelas leituras obrigatórias para quem deseja entender, como explica Djamila, que o “privilégio social resulta no privilégio epistêmico, que deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas pelo ponto vista do poder”. Aproveite e depois de Água de barrela leia também Pequeno Manual Antirracista e perceba como as duas obras dialogam, nos trazendo a realidade de uma sociedade fraturada que se nega a reconhecer a existência dessas fraturas. Como diz Djamila, é “impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista. É algo que está em nós e contra o que devemos lutar sempre”.
[1] RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
[2] CRUZ, Eliana Alves. Água de barrela. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2018.
[3] Disponível em: https://theintercept.com/2019/08/15/descobrir-origem-africana/. Acesso em: 23 ago. 2022.