Em última análise, a felicidade se resume em escolher entre o desconforto de tomar consciência das nossas aflições mentais e o desconforto de ser dominado por elas.
Yongey Mingyur Rinpoche
Por
Margarete Hülsendeger |
Segundo a psicologia evolucionista[1], no nível mais básico, todas as ideias, percepções e sentimentos que nos guiam pela vida são os mesmos que ajudaram nossos ancestrais a passar genes para a geração seguinte. Por isso, rigorosamente falando, é irrelevante saber se esses pensamentos e sensações fornecem uma visão genuína da realidade. Ou seja, por conta da necessidade de sermos produtivos em condições adversas, o cérebro humano foi projetado para, entre outras coisas, nos iludir.
Uma maneira de nos tornar mais produtivos é aumentando a expectativa do prazer, mas, ao mesmo tempo, fazendo que esse prazer seja de curta duração. Ansiar por algo a ponto de considerá-lo vital, para depois perceber que ele não era tão importante, é a forma encontrada pela evolução para nos manter em movimento. Infelizmente, conhecer essa “verdade” não torna a vida melhor. A busca pelo prazer transforma-se em uma esteira projetada para nos manter correndo sem chegar a lugar algum, tornando-se uma das maiores fontes de frustração e ansiedade.
A conquista do prazer, no entanto, não é a única ilusão criada pelo cérebro no decorrer da evolução. Existem outros sentimentos e sensações que entraram para a linhagem humana por que um dia serviram aos interesses dos nossos antepassados. A raiva e o desejo de punir quem nos trata de maneira injusta ou demonstra desrespeito, por exemplo, são emoções profundamente humanas porque são uma herança ancestral. Assim, embora exista algo desagradável em ficar irritado, há algo de prazeroso no próprio sentimento da raiva: a sensação de que se está furioso com motivo. Essa aura de dignidade com a qual revestimos muitas de nossas ações é outro sentimento ilusório, pois cedendo a ele assumimos comportamentos que podem nos prejudicar de formas que não conseguimos compreender.
Ao lado do prazer e da raiva está a necessidade de nos importarmos – e muito – com o que as outras pessoas pensam de nós. Essa é outra daquelas ilusões impostas pela evolução porque, em algum momento do passado, era de capital importância estar nas boas graças dos vizinhos. Portanto, a suspeita de que as pessoas pensam muito sobre nós, para o bem ou para o mal, também costuma ser uma ilusão. Do mesmo modo, a sensação tácita de que há alguma importância no que quase todas as pessoas que conhecemos imaginam sobre nós. Esse sentimento gera estresse e, por consequência, a perda de tempo e de energia com preocupações que não servem para nada.
O grande desafio é compreender que é da própria natureza dos sentimentos e das sensações dificultar a capacidade de perceber as diferenças entre aqueles que são valiosos e os que são prejudiciais. Em contrapartida, todos esses pensamentos e percepções têm em comum o fato de terem sido “projetados” para nos convencer a segui-los. Um convencimento facilitado quando se tem a colaboração do ego. Quando acreditamos em algo acerca de nós mesmos fica mais fácil persuadir outras pessoas a acreditarem na mesma ideia. Essa é a razão para contarmos histórias que, além de precisarem ser coerentes, nos colocam sob uma luz favorecedora. Como resultado, somos propensos a nos lembrar mais dos eventos que nos apresentam de forma favorável e menos naqueles que nos mostram de maneira negativa. Era importante para os nossos antepassados, segundo a psicologia evolucionista, parecer mais forte, mais justo, mais honesto e confiável porque essas eram (e são) características que despertam respeito e lealdade.
Com as poucas ideias que apresentei neste texto é possível perceber que a psicologia evolucionista é uma área fascinante porque pode fornecer uma estrutura básica capaz de integrar todo o campo da psicologia do mesmo modo que a biologia evolutiva fez com a biologia. Contudo, ela não é uma unanimidade. As críticas feitas a ela envolvem questões como a testabilidade, em virtude da grande incerteza sobre como era o ambiente ancestral. Ademais, será que todos os nossos pensamentos, sentimentos e percepções têm como única explicação causas genéticas e adaptativas? A pergunta (e a crítica) não invalida o que foi exposto aqui, ao contrário, ela propicia uma reflexão sobre novas formas de interpretar o comportamento humano diante dos contratempos da vida. Como a ciência não trabalha com absolutos, as questões levantadas pela psicologia evolutiva abrem a possibilidade de pensar sobre possíveis caminhos para entendermos nosso papel na sociedade na qual vivemos.
[1] Os conceitos aqui tratados sobre psicologia evolucionista foram baseados no livro Por que o budismo funciona?, de Robert Wright (Editora Sextante, 2018).