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A LUTA MAIS LONGA

Uma mulher caminha por uma estrada de mil quilômetros. Vinte minutos depois de iniciar, proclama-se que ela ainda tem 999 quilômetros pela frente e nunca chegará a lugar nenhum.

Rebecca Solnit

Margarete Hülsendeger

A escritora, historiadora e ativista americana Rebecca Solnit (Connecticut, 1961) tem mais de 15 livros publicados com temas que vão desde o feminismo, passando pela história indígena e ocidental, até aqueles que abordam as diferentes mudanças sociais observadas no mundo. Atribuem a ela a criação do termo “mansplaining” (em tradução livre “homens explicando”) que representa as situações nas quais um homem comenta ou explica algo a uma mulher de uma maneira condescendente, confiante e, muitas vezes, imprecisa ou simplista.

Solnit, no entanto, diz não ter participado do invento da expressão, considerando-o uma forma reducionista de rotular um problema extremamente complexo. De qualquer modo, independente da autora aceitar, ou não, a “maternidade” do termo, o fato é que ele foi inspirado por um ensaio escrito por ela, em 2008, cujo título era “Os homens explicam tudo para mim”. Como resultado, a palavra “mansplaining” tornou-se tão popular que, em 2010, ela foi escolhida pelo The New York Times como uma das palavras mais usadas na grande mídia de jornalismo político. Quatro anos depois, o ensaio de 2008 seria expandido, tomando a forma de um livro de mesmo nome, no qual Solnit apresenta, ora de forma poética, ora irrequieta e, na maior parte do tempo, indignada, as diversas personificações da violência contra a mulher.

No livro, a ativista defende, por exemplo, que a misoginia seria melhor compreendida se considerássemos o abuso de poder a base sobre a qual se assenta toda e qualquer violência contra a mulher. Ao narrar diferentes histórias sobre agressões a mulheres, Solnit aponta a existência de um padrão amplo, profundo, terrível e, com frequência, ignorado pela sociedade. Um padrão que não tem raça, classe, religião ou nacionalidade, mas tem gênero. O preocupante, e inquietante, é que essa “pandemia de violência” muitas vezes é explicada por qualquer motivo, menos o gênero do agressor e da vítima. A razão, segundo Solnit, é que a violência, antes de tudo, é autoritária. Ou seja, ela sempre começa com a ideia: “Eu tenho o direito de controlar você”. Uma situação que pode ocorrer com a mulher mais obediente e submissa do universo porque o “desejo de controlar provém de uma raiva que a obediência não consegue mitigar”. Para exemplificar o quadro exposto por Solnit pensemos no Brasil.

Entre março de 2020 (no início da pandemia) e dezembro de 2021 (último mês com dados disponíveis) foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulneráveis de vítimas do gênero feminino. Portanto, em 2021, em média uma mulher foi vítima de feminicídio a cada sete horas[1]. Sete horas! Um dado que, apesar de assustador, não representa toda a realidade, já que muitas mulheres não apresentam denúncias contra seus agressores. Assim, “com frequência essas mortes vêm após anos, ou décadas, de terem sido silenciadas e apagadas em casa, na vida diária, pelas ameaças e pela violência”.

Desse modo, a violência de gênero, assim como a tortura, torna-se um ataque direto à integridade e a capacidade de autodeterminação e expressão da vítima. E quando, o medo é, enfim, superado e as mulheres decidem falar, seu direito e sua voz sofrem ataques e ela passa a ser tratada como uma “louca delirante, uma conspiradora maldosa, uma mentirosa patológica, uma chorona que não percebe que foi tudo apenas brincadeira”. Essa tática de silenciamento é quase sempre usada com o mesmo propósito: desqualificar e calar as mulheres evitando qualquer discussão sobre a violência de gênero.

Para Solnit, é preciso dar voz as mulheres, começando por nomear os fenômenos que estão presentes em nossa sociedade. Ao substituir uma palavra ou expressão por outra – “espancamento da esposa” por violência sexual, por exemplo – quebra-se o poder da linguagem em transmitir um significado. Como consequência, o sentido e a força dessas palavras tornam-se mais claros e abrangentes permitindo que se possa falar a respeito e até mesmo transformar um cenário no qual ainda impera a humilhação e a brutalidade. De acordo com a historiadora americana, as novas ferramentas linguísticas redefinem o “mundo que muitas mulheres encontram diariamente e abrem caminho para começar a mudá-lo”.

O livro Os homens explicam tudo para mim[2], apesar de ter sido publicado pela primeira vez em 2014, continua sendo um texto atual e impactante porque nele Rebecca Solnit traça um painel amplo e claro da situação da violência contra a mulher no mundo. Contudo, a despeito de todos os casos angustiantes narrados ao longo da obra, no final a autora lança uma mensagem de esperança lembrando que, embora a homofobia e a misoginia ainda sejam uma praga no século XXI, não são tão terríveis como foram nas décadas de 1970 e 1980. É importante, portanto, não esmorecer nessa longa luta das mulheres para serem ouvidas e respeitadas, porque escondidos atrás de discursos retrógrados existem espectros de outra época desejando colocar as mulheres de volta “no seu lugar”, um lugar de silêncio e impotência.


[1] Fonte: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/03/violencia-contra-mulher-2021-v5.pdf. Acesso em 10 maio 2022.

[2] SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Tradução Isa Mara Lando. São Paulo: Cultrix, 2017.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

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