*Daniel Medeiros
Há alemães, sobretudo na elite cultural, que ainda lamentam publicamente o fato de a Alemanha ter obrigado Einstein a fazer as malas, mas ninguém admite que era um crime bem maior matar o pequeno Hans Cohn da esquina, mesmo que o pequeno Hans Cohn não fosse um gênio (in: Eichmann in Jerusalém)
Quando Hannah Arendt morreu, de um infarto fulminante, no dia 4 de dezembro de 1975, havia iniciado a última parte da obra “A vida do espírito”, intitulada “O Julgar”. Na verdade, havia apenas colocado a página com o título em sua máquina de escrever e também destacado duas citações, uma delas do Fausto, de Goethe, que dizia: Se eu pudesse libertar meu caminho da magia, se pudesse desaprender totalmente seus sortilégios, confrontar-te, Natureza, simplesmente como homem, ser um humano valeria então o esforço.
Encerrava-se ali uma trajetória de vinte e cinco anos de publicações, desde “A Origem do Totalitarismo”, no qual Hannah Arendt afirma, como um recado que se poderia ler no último jornal de domingo: Esse livro foi escrito com mescla do otimismo temerário e do desespero temerário. Afirma que o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; que ambos resultam da superstição, não da fé. Foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor específico, escapando da nossa compreensão e tornando-se inútil para fins humanos.
No seu velório, o editor William Jovanovich, disse sobre ela: Ela era ardorosa como os que acreditam na justiça podem tornar-se e como os que acreditam na misericórdia devem permanecer. E concluiu dizendo: Ela, aonde a investigação séria a levasse e , se fez inimigos, nunca foi por medo.
Hannah Arendt envolveu-se em diversas polêmicas, começando pela “Origem do Totalitarismo”, no qual comparou o nazismo e o stalinismo, igualando seu poder destrutivo e sua capacidade de aniquilar a dignidade já que ambos eram formas de repressão da pluralidade humana. No início dos anos 60, com sua obra “Eichmann em Jerusalém”, causou uma comoção na comunidade judaica ao, aparentemente, diluir a figura do assassino Eichmann em um burocrata insípido: As suas ações eram monstruosas, mas quem as fez era quase normal, nem demoníaco, nem monstruoso, diz Arendt, buscando compreender o que torna pessoas como esse homem medíocre capazes das mais vis atrocidades. O mal é a irreflexão, conclui. Por isso o mal é banal, não por não ser sério e terrível, mas por estar ao alcance de qualquer um, a qualquer momento. Daí decorre uma questão, levantada pela filósofa italiana Michela Marzano, e que não foi suficientemente discutida na época da publicação do livro, ocupados que estavam seus afetos e desafetos em meio ao desejo de cancelamento da pensadora: Como se faz para fazer o bem quando é tão fácil escorregar para a barbárie, quando basta deixar-se levar pelo fluxo das pulsões para se esquecer da nossa humanidade comum?
Alguns anos antes de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt publicou “A Condição Humana”, livro no qual deu continuidade à sua perplexidade sobre o que havia acontecido com a vida pública, com a Política, com o contrato no qual as pessoas se comprometiam a um bem comum, condição indissociável de qualquer projeto de realização individual. Hannah volta-se para os gregos e para a construção desse modelo que se chamou Democracia para acompanhar e compreender o que havia se perdido de lá para cá. A conclusão da autora é que palavras fundamentais para a nossa concepção de sociedade democrática, como Liberdade e Igualdade, só são possíveis de existir no espaço público, o espaço da Ação, no qual pessoas livres e iguais em direitos criam um mundo novo e o dividem em uma rede de relacionamentos onde não há um autor, mas enredos que são partilhados. No entanto, a modernidade asfixiou esse espaço público e o substituiu pela Economia, pelo Labor, pela vida nua, a simples reprodução de bens de consumo sem outros fins que a da satisfação momentânea, fugaz. Como diz a autora: E, realmente, entre as principais características da era moderna, desde o seu início até o nosso tempo, encontramos as atitudes típicas do homo faber: a instrumentalização do mundo, a confiança nas ferramentas e na produtividade do fazedor de objetos artificiais; a confiança no caráter global da categoria de meios e fins e a convicção de que qualquer assunto pode ser resolvido e qualquer motivação humana reduzida ao princípio da utilidade.
Na mesma época da produção dessa obra, Hannah Arendt escreveu um ensaio chamado “A crise da Educação”, no qual reitera o papel coletivo na construção da sociedade, a diferença entre o mundo da casa – no qual os pais educam os filhos para a sobrevivência – e o espaço público, onde as crianças aprendem sobre o mundo e sobre como cuidar dele. Fala ainda da responsabilidade dos adultos, afirmando que ser professor não é só transmitir conteúdos mas, igualmente, responsabilizar-se dessa tarefa de proteger o mundo das crianças e as crianças do mundo, apresentando a elas o que há para ser preservado e dando a elas ferramentas de transformação do que precisa avançar. Para Hannah Arendt, a crise da Educação consistia exatamente na omissão dos adultos dessa tarefa, na qual sofria o mundo, amofinava-se o espaço público e quebrava a bússola das crianças, deixando-as à mercê das superstições e de seus desejos mais primários.
Para Hannah Arendt, a Política era a palavra chave do nosso tempo. Era preciso compreender o que se passava, pois não podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. Era preciso agir, exercendo nossa capacidade de Julgar, evitando perder esse terreno construído (com tanto custo) de Liberdade e Igualdade. Como ela diz, no epílogo de seu “A Promessa da Política”: o moderno crescimento da ausência do mundo, a destruição de tudo que há entre nós, pode ser também descrito como a expansão do deserto (…) O perigo está em nos tornarmos verdadeiros habitantes do deserto e nele passarmos a nos sentir em casa.
Por isso, por tudo isso, e tanto mais, Hannah Arendt é uma leitura necessária, uma reflexão necessária, uma memória necessária. Porque o pensamento de Arendt é uma apelo para escutarmos uns aos outros e assim sobrevivermos aos cantos das sereias que querem nos conduzir para as rochas. E para compreendermos que o melhor que construímos ao longo do tempo nunca foi para a glória de um mas para o bem estar de muitos, que não chega a ser uma expectativa excitante, mas é a mais humana das possibilidades que dispomos para não perecermos no deserto.
*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.daniemedeiros.articulista@gmail.com@profdanielmedeiros