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‘Homem de papel’, uma metaficção machadiana

            ‘Homem de papel’, uma metaficção machadiana

                                                                                 Adelto Gonçalves (*)

Oitavo romance de João Almino será fundamental para quem quiser saber, daqui a cem anos, o que foi o Brasil destes tempos

                                                           I

        Foi quando já estava em seus derradeiros anos que Machado de Assis (1839-1908) escreveu o romance Memorial de Aires (1908) e que tem como personagem principal o conselheiro Aires, um diplomata em fim de carreira que já havia aparecido em Esaú e Jacó (1904) como participante do enredo, anotando em seu caderno tudo o que de mais significativo acontecia ao redor de sua vida. Esse personagem-narrador seria um alter ego do autor, como deixam concluir algumas coincidências, tais como a idolatria que dedica à mulher e a ausência de filhos em seu casamento.

            Pois é esse personagem carismático que já não se sentia como “deste mundo”, pois se achava um homem do século XIX, que o premiado romancista João Almino ressuscita e transporta para o século XXI em sua última obra, Homem de papel (Editora Record, 2022), que, desta vez, alinha-se ao gênero da metaficção, ao romper com os cânones do Modernismo, mostrando-o como um autor pós-modernista. É o que se conclui da observação do professor Abel Barros Baptista, da Universidade Nova de Lisboa, feita no posfácio, ao ressaltar que “a primeira possibilidade de Homem de papel é assim a metaficcional”, com “Aires narrando-se de novo, mas para se inventar novo”.

            Como se sabe, esse termo foi cunhado pelo romancista, contista, ensaísta e crítico literário norte-americano William Howard Gass (1924-2017), na década de 1960, para definir os romances que fugiam às convenções estabelecidas pelo Modernismo. Em Homem de papel, o personagem-narrador sai de Memorial de Aires para atuar no Brasil do século XXI, hoje um país à deriva num mar de ignorância e que parece ter perdido para sempre a batalha da Educação, como dizia João Calmon (1916-1999). E, assim, João Almino consegue construir “uma alegoria delirante e sarcástica da atual conjuntura política brasileira”, na definição perfeita de Abel Barros Baptista.

            De fato, como observa no texto de apresentação o professor Hélio Guimarães, livre-docente de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP), autor de vários livros sobre a obra de Machado de Assis, neste seu oitavo romance, João Almino “não poupa ironia à vida literária, à academia, à política e à diplomacia”. E, quando o conselheiro redivivo se refere a alguns personagens que povoam Homem de papel, não há como deixar de associá-los a algumas figuras que há anos dominam a cena política brasileira.

                                                           II

            É de se lembrar que, em Esaú e Jacó, o conselheiro está envolvido como espectador de uma trama entre dois irmãos que têm ideais opostos, ou seja, um defende a monarquia enquanto o outro é adepto do regime republicano. Em seu retorno ao mundo dos homens, mais de um século depois, Aires, ao sair do exemplar que pertence à jovem diplomata Flor, depara-se com os irmãos Hugo e Miguel, igualmente defensores de ideias políticas opostas. Desta vez, não se trata de gêmeos, mas de trigêmeos, pois Flor teria nascido do mesmo parto que colocara seus irmãos no mundo. E procura atuar como o ponto de equilíbrio entre eles. 

            O que se destaca neste livro é a preocupação do autor em dar ao romance um viés pós-moderno, tratando de temas até há pouco tempo incomuns em romances, como o relacionamento entre as pessoas pelas chamadas redes sociais, que tornam a comunicação cada vez mais veloz, em que uma palavra mal colocada pode redundar em bloqueio e no fim de uma amizade.

            Igualmente diplomata como o personagem Aires, João Almino conhece muito bem não só os meandros da política, que frequentemente obriga os profissionais do Itamaraty a agirem contra os seus princípios em nome da governabilidade e do bom entendimento entre as nações, como domina o cenário por onde transitam as personagens, ou seja, as agitadas superquadras ou a Praça dos Três Poderes em Brasília, em vez das pacatas Rua do Ouvidor e Praia de Botafogo, ao tempo de Machado de Assis.

            Nesse sentido, João Almino assume-se como o escritor que faz de Brasília o pano de fundo predileto para as suas obras, tal como Machado de Assis fez do Rio de Janeiro do final do século XIX e início do XX, o que significa que, daqui a cem anos ou mais, sua obra, tal como a machadiana, será fundamental para quem quiser conhecer o Brasil destes tempos.

            Ao mesmo tempo, é de se observar que, em sua metaficção machadiana, João Almino não deixa de exercer o humor à inglesa, ou a ironia, e ainda o humor cético, tal como Machado de Assis, construindo sátiras de fina textura. Como a da invasão de Brasília por uma legião de antas e da pretensão de uma delas de se candidatar à presidência da República.    

            Tal como a obra que lhe inspirou, João Almino faz de Homem de papel não propriamente um romance, nem mesmo uma novela que tenha escapado às rédeas do narrador, com suas quatrocentas e tantas páginas, mas um relato, um diário, enfim, um memorial ou um testamento literário de um tempo em que já não há espaço para ilusões.

                                       III

        Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, João Almino (1950), diplomata, é cônsul-geral do Brasil em Munique, na Alemanha. Foi embaixador em Quito, no Equador, por três anos e meio, de 2018 a 2022. Foi também cônsul em Lisboa. Fez doutoramento em Paris, sob a orientação do filósofo e historiador da Filosofia Claude Lefort (1924-2010), foi professor na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), na Universidade de Brasília (UnB), no Instituto Rio Branco e nas universidades de Berkeley, Stanford e Chicago, nos Estados Unidos. É membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) desde 2017.

Como romancista, é hoje reconhecido pela crítica como um dos nomes mais importantes da Literatura Brasileira, como comprovam os muitos prêmios que sua obra já recebeu. Seu penúltimo romance, Entre facas, algodão (Editora Record, 2018), com apresentação de Cristóvão Tezza e posfácio de Hans Ulrich Gumbrecht, obteve grande repercussão entre a mídia especializada.

O seu romance Ideias para onde passar o fim do mundo (1987) foi indicado ao Prêmio Jabuti e ganhou o Prêmio do Instituto Nacional do Livro (INL) e o Prêmio Candango de Literatura, enquanto As cinco estações do amor (2001) conquistou o Prêmio Casa de las Américas de 2003. Já O livro das emoções (2008) foi indicado ao 7º Prêmio Portugal Telecom e finalista do 6º Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de 2009.

Outro romance, Cidade livre (2010), foi vencedor do Prêmio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de melhor romance publicado no Brasil entre 2009 e 2011 e finalista do Prêmio Jabuti e do Prêmio Portugal Telecom de 2011, enquanto Enigmas da primavera (2015) ficou em segundo lugar no Prêmio Jabuti, como o melhor livro brasileiro traduzido, chegou a semifinalista do Prêmio Oceanos e foi finalista do Prêmio Rio de Literatura de 2016 e segundo colocado do Prêmio São Paulo de Literatura de 2016, como livro brasileiro publicado no exterior, com tradução para o inglês. É autor também do romance Samba-enredo (1994). Alguns de seus romances foram publicados na Argentina, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, México e em outros países.

Seus livros de História e Filosofia Política são referências para os estudiosos do autoritarismo e da democracia. Entre estes, estão Os democratas autoritários (1980), A idade do presente (1985), Era uma vez uma Constituinte (1985) e O segredo e a informação (1986). É também autor de Naturezas mortas – a filosofia política do ecologismo (2004), de Brasil-EUA: balanço poético (1996), Escrita em contraponto (2008), O diabrete angélico e o pavão: enredo e amor possíveis em Brás Cubas (2009), 500 anos de Utopia (2017) e Dois ensaios sobre Utopia (2017).

Publicou ainda Literatura Brasileira e Portuguesa ano 2000, organizado com o professor Arnaldo Saraiva, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e Rio Branco, a América do Sul e modernização do Brasil (2002), organizado com Carlos Henrique Cardim, diplomata e professor universitário, docente do Instituto Rio Branco e da UnB.

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Homem de papel, de João Almino, com apresentação de Hélio Guimarães, professor da Universidade de São Paulo (USP) e posfácio de Abel Barros Baptista, professor da Universidade Nova de Lisboa. Rio de Janeiro: Editora Record, 416 páginas, R$ 64,90, 2022. E-mail: sac@record.com.br Site: www.record.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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João Almino: reconhecido pela crítica como um dos nomes mais importantes da Literatura Brasileira hoje – Crédito da foto: Maria Teresa García

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