Por Margarete Hülsendeger
A inteligência é adaptabilidade constante e individual. As adaptações que uma espécie inteligente pode fazer em uma única geração, outras espécies fazem ao longo de muitas gerações de reprodução e morte seletiva. Ainda assim, a inteligência é exigente. Se for mal direcionada por acidente ou propositalmente, pode promover suas próprias orgias de procriação e de morte.
Octavia Butler
Segundo o dicionário on-line de português[1] “parábola” é um substantivo feminino que significa: “Comparação desenvolvida em uma história curta, cujos elementos são eventos e fatos da vida cotidiana e na qual se ilustra uma verdade moral ou espiritual”. No Novo Testamento vamos observar Jesus Cristo utilizando esse recurso várias vezes para ilustrar uma situação ao mesmo tempo que transmitia uma mensagem. Entre as parábolas mais conhecidas estão a parábola do bom samaritano, a parábola do filho pródigo, a parábola do semeador e a parábola dos talentos. Essas duas últimas serviram de inspiração para a escritora afro-americana Octavia Butler (1947-2006).
Butler ficou conhecida por seus livros de ficção científica feminista nos quais estão presentes questões como o racismo e o preconceito. Ela publicou seu primeiro livro nos anos 1970 (Patternmaster), mas o reconhecimento só ocorreria em 1999, com o romance A parábola dos talentos (1998), quando recebeu o prêmio Nebula de Melhor Romance da Science Fiction Writers of America (SFWA). Para quem nunca ouviu falar dessa premiação basta dizer que ela existe desde 1966 e entre os autores premiados estão nomes como Frank Herbert, Philip K Dick, Isaac Asimov, Arthur Clarke, George R. Martin e muitos outros.
A parábola dos talentos é o segundo livro do que deveria ter sido uma série – Semente da terra – com mais quatro romances. No entanto, Butler decidiu não prosseguir com o projeto porque, segundo ela, a pesquisa e a escrita dos dois primeiros livros a sobrecarregaram e a deprimiram. Por isso, ao invés de continuar com esse projeto, decidiu escrever algo “leve” e “divertido”, Fledgling (2005), uma história que combina ficção científica e vampiros. Assim, a série Semente da terra acabou se tornando uma “biologia”, formada por A Parábola do Semeador (1995)[2] e A Parábola dos talentos (1998)[3].
No primeiro livro Butler nos apresenta a sua protagonista, uma jovem negra de 15 anos chamada Lauren Oya Olamina[4]. Quando a história começa estamos em 2024 e Lauren está vivendo em um bairro fechado, na companhia de seu pai, um professor universitário e pastor batista, sua madrasta, também professora universitária, e seus quatro irmãos. Durante os quatro anos que duram essa narrativa (2024 a 2027) a sociedade americana está enfrentando uma severa crise econômica e social. Mudanças climáticas, escassez de água, falta de empregos, fome, miséria, drogas, violência, são alguns dos problemas que Lauren precisa enfrentar. Precoce e lúcida, ela percebe a necessidade de se preparar para proteger a família dos desastres eminentes que a pequena comunidade onde vive insiste em ignorar. No entanto, o que começa como uma luta pela sobrevivência, logo se transforma no nascimento de uma nova fé e de uma surpreendente visão do destino humano: alcançar as estrelas.
Em A parábola dos talentos seguimos acompanhando a história de Lauren, mas se no primeiro livro, apenas a visão da protagonista nos é apresentada, no segundo encontramos dois novos pontos de vista: do marido e da filha. O marido, um médico negro, trinta anos mais velho, apesar de amar Lauren, não compartilha de suas crenças e sonhos e pensa apenas em conquistar algum tipo de segurança. Já a presença da filha, como narradora, faz com que a narrativa deixe de ser apenas uma biografia de Lauren e se torne uma história de mãe e filha feita de mentiras, solidão e desencontros.
Butler, em uma entrevista[5], disse que A parábola dos talentos não foi pensada como uma continuação da história de vida de Lauren, mas como “uma história de pessoas tentando, tanto individualmente como em grupos, encontrar uma maneira de superar seus problemas”. Como resultado, nesse segundo volume a protagonista precisa pensar além das questões que envolvem a simples sobrevivência, ela também tem de encontrar uma maneira de disseminar suas crenças, “na esperança de que elas pudessem desviar as pessoas do caos e destruição em que caíram, em direção a um objetivo criativo e trabalhoso de longo prazo”. E como toda a boa história exige conflito, Butler colocou no caminho de Lauren todas as dificuldades que poderiam desviá-la de seu objetivo: desde a dissolução da pequena comunidade que ela conseguiu formar, passando pela perseguição de um grupo de fanáticos religiosos até a traição de seu próprio irmão.
Se A parábola do semeador representa o começo de uma nova forma de ver o mundo, A parábola dos talentos simboliza a capacidade do ser humano de se adaptar a situações limites. Também pode-se dizer que no cerne da história de Lauren Olamina estão as mensagens que as duas parábolas que dão título aos livros tentam transmitir. A parábola do semeador representa a busca de um “solo” fértil onde uma “semente” possa crescer e se desenvolver, dando frutos para que outras sementes, no futuro, tenham condições de germinar. Já a parábola dos talentos reflete sobre as escolhas e suas consequências: utilizar nossos talentos – inteligência, criatividade, habilidade de planejamento – para trabalhar em benefício da humanidade ou manter, até as últimas consequências, uma visão de mundo baseada no egoísmo e na autossatisfação?
A forma como Lauren reage a essas questões é a história que Octavia Butler nos conta nas suas duas parábolas. E ao contar a trajetória de sua protagonista ela também alerta para os perigos de escolhermos caminhos equivocados, pois, como ela explica: “Às vezes a única coisa mais perigosa que gente assustada, confusa, desesperada procurando por soluções é gente assustada, confusa, desesperada encontrando e se contentando com soluções ruins”. Aventure-se no universo de Octavia Butler e decida se deseja ser uma pessoa melhor ou nada além de um “dinossauro de pele lisa”.
[1] https://www.dicio.com.br/
[2] BUTLER, Octavia. A parábola do semeador. Tradução Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019 (Edição Kindle).
[3] BUTLER, Octavia. A parábola dos talentos. Tradução Carolina Caires Coelho. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019 (Edição Kindle).
[4] A origem do segundo nome da protagonista (Oya) só é explicada no segundo livro quando outra personagem (a filha de Lauren) diz que “Oyá” é o nome de uma Orixá – uma deusa – nigeriana, do povo iorubá. No Brasil essa Orixá recebeu o nome de Iansã, deusa do vento, do fogo, da morte, causadora de grandes mudanças.
[5] Essa entrevista encontra-se no final do livro A parábola dos talentos, com o título “Uma conversa com Octavia E. Butler”.