O ideal seria que o homem preservasse sempre uma mente calma e tranquila, e jamais permitisse que uma paixão ou um desejo transitório lhe perturbassem a paz.
Mary Shelley
Por Margarete Hülsendeger |
O pai era um filósofo, partidário da doutrina utilitarista segundo a qual as ações são boas quando promovem a felicidade e más quando favorecem a infelicidade. A mãe, escritora, era uma defensora dos direitos da mulher e uma das fundadoras da filosofia feminista. Com pais tão pouco comuns não é de estranhar que a filha também fosse uma pessoa especial, capaz de mobilizar a imaginação de milhares de pessoas por mais de dois séculos. Estou falando da escritora inglesa Mary Wollstonecraft Shelley, nascida Mary Wollstonecraft Godwin (1797-1851).
Apesar de ter escrito ensaios, biografias, peças de teatro e até relatos de viagens, ela ficou conhecida e imortalizada pelo romance Frankenstein: ou o moderno Prometeu (1818). Objeto de inúmeras adaptações para o cinema – a mais recente de 2015, com James McAvoy e Daniel Radcliffe como protagonistas – é considerada a primeira obra de ficção científica que se tem conhecimento. Em 2018 a escola de samba Beija-Flor, ao apresentar o enredo “Monstro é aquele que não sabe amar. Os filhos abandonados da pátria que os pariu”, homenageou a autora inglesa no ano em que seu romance completava 200 anos. Os autores do enredo aproveitaram a história de Shelley para expor os diversos problemas sociais do Brasil, em especial o abandono dos mais jovens pelas autoridades. Não sei dizer se o primeiro lugar da Beija-Flor naquele ano foi pelo enredo apresentado, mas, com certeza, deve ter contribuído para que ela ganhasse a disputa.
Na internet podemos encontrar uma série de informações e curiosidades sobre a autora: desde quem eram seus pais até relatos sobre seu relacionamento com o poeta romântico e filósofo Percy Bysshe Shelley (1792-1822), com quem se casou em 1816, após o suicídio de sua primeira esposa. E, é claro, também encontraremos a história por trás da escrita do seu romance mais famoso. Segundo se sabe, ele teria surgido durante sua estadia na casa de outro poeta, Lorde Byron (1788-1824), quando enfrentavam dias e dias de chuva e mau tempo. Respondendo ao desafio do anfitrião, Mary teria tido a ideia de escrever um conto sobre um estudante dando vida a uma criatura feita de partes de cadáveres. Esse evento ocorreu em 1816, quando a autora tinha apenas 19 anos, mas o conto, que acabou se tornando um livro, só seria publicado em 1818 por uma pequena editora de Londres, após ter sido rejeitado por duas outras editoras. Se você quer conhecer um pouco mais sobre essa história recomendo o filme “Mary Shelley” (2018), protagonizado por Elle Fanning[1]. Confesso que o filme me decepcionou um pouco, mas para quem não conhece absolutamente nada sobre a autora de Frankenstein é um bom começo.
A pergunta que o leitor já deve estar se fazendo é qual a relação de Mary Shelley com o negacionismo. A resposta está no livro The workshop and the world: what ten thinkers can teach us about science and authority[2] (2019), do filósofo e historiador da ciência Robert P. Crease.
A proposta do autor é simples: explicar as razões de a sociedade ter começado a duvidar da autoridade científica, apresentando as melhores formas de combater o negacionismo da ciência. Para atingir esse objetivo o historiador recorre as biografias de oito homens e duas mulheres fundamentais na história da ciência e da filosofia: Francis Bacon, Galileu Galilei, René Descartes, Giambattista Vico, August Comte, Max Weber, Kemal Atatürk, Edmund Husserl, Hanna Arendt e, é claro, Mary Shelley. Crease acredita que se entendermos as histórias e as ideias desses indivíduos poderemos responder de forma correta, no momento oportuno, a todas as questões lançadas por aqueles que negam os avanços científicos e colocam em risco a saúde pública, o bem estar das gerações futuras e o destino do planeta.
No caso de Mary Shelley, Crease observa que os elementos básicos do livro já estavam presentes no ambiente no qual ela vivia e que a autora, por meio de uma descarga elétrica metafórica, teve o grande mérito de reuni-los em seu romance. A força narrativa e o poder das imagens descritas por ela são tão fortes que agem como uma espécie de para-raios atraindo a angústia e a ansiedade de se viver em uma época predominantemente técnica e científica. Como resultado, até os dias de hoje continuamos descobrindo as diferentes facetas desse monstro de mais de 200 anos: organismos geneticamente modificados, clones, fontes de radiação, produtos químicos que contaminam o ar e o solo, drones, etc. Se por um lado ainda não se sabe como esses eventos poderão afetar o homem e o planeta, por outro espera-se que eles possam desaparecer, como aconteceu com o monstro no romance, alimentando o autoengano ao qual facilmente sucumbimos. Por isso, um dos méritos de Shelley foi criar uma história que frustra qualquer tentativa da parte do leitor de distanciar-se e adotar uma atitude de mero observador; sua história força o leitor a posicionar-se e, assim, enfrentar o monstro.
No entanto, para Crease, o valor de Frankenstein não está apenas na descrição do eterno conflito entre criador e criatura ou nas loucuras de um cientista misantropo. Segundo o historiador, o romance de Shelley contém uma mensagem surpreendentemente atual: o monstro é a representação do indivíduo incapaz de integrar-se no espaço (país, estado, região) para o qual foi obrigado a migrar, sempre sendo visto com desconfiança e preconceito. Desse modo, os efeitos negativos que ocorrem ao longo da narrativa não podem ser atribuídos apenas aos avanços tecnológicos da época (em especial, a eletricidade), aos cientistas sem escrúpulos (esse não é o caso de Victor Frankenstein, um jovem idealista), à psicologia (uma mente perturbada) ou à casualidade. Além de todos esses elementos, está também presente o entorno no qual o cientista está mergulhado e como ele pode influenciar suas decisões. Uma mistura que tinha tudo para dar errado, mas não deu, pois a monstro foi criado e solto no mundo após o criador ter fugido as suas responsabilidades. E por que isso aconteceu?
A resposta de Crease é que Victor Frankenstein, durante todo o processo de pesquisa, atuou sem qualquer supervisão, ou, como se diz nas publicações científicas, sem o aval de seus pares. Esse isolamento foi a causa por trás da criação da criatura, um ser com o qual a sociedade não soube lidar e que provocou um efeito dominó cujo resultado foi a morte de inocentes. Desse modo, o romance de Mary Shelley adverte para os perigos da busca obstinada de objetivos científicos, pois ela, além de não ser sempre libertadora, tem o poder, às vezes incompreensível, de fazer com que as interações humanas com a natureza abram as portas para a tragédia. Como diz Crease, a autoridade científica não é suficiente por si mesma para ajudar a humanidade a se prevenir contra as ameaças e transformar em realidade as suas esperanças. Por isso, é preciso pensar em ações (discursos não são mais suficientes) que levem em conta não apenas a força dos avanços científicos, é necessário refletir também sobre suas fragilidades. Afinal, as características que fazem com que a ciência funcione tão bem são as mesmas que a tornam vulnerável ao ataque dos negacionistas.
[1] O filme pode ser encontrado na Netflix.
[2] O livro, infelizmente, ainda não está traduzido para o português, mas seu título, em uma tradução livre, pode ser entendido como “A oficina e o mundo: o que dez pensadores podem nos ensinar sobre ciência e autoridade”.
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