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Quem somos nós?

Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir – respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir – disse Alice.
Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas – replicou o gato.
Lewis Carroll

Margarete Hülsendeger

A mente muitas vezes nos aplica peças estranhas, difíceis de entender. Com relativa frequência nos deixamos levar por pensamentos aparentemente sem sentido. Outro dia, por exemplo, lembrei de um filme que, há alguns anos, provocou inúmeros debates. O interesse despertado por ele, no entanto, não foi devido a alguma indicação ao Oscar ou mesmo por que entre seus atores havia super estrelas. Na verdade, ele se tornou conhecido pelo assunto abordado: a possível conexão entre diferentes campos da ciência e a espiritualidade. Estou me referindo, ao filme What the bleep do we know?[1], em português, Quem Somos Nós?

Sei que estou um “pouco” atrasada – afinal, ele foi lançado em 2004, já gerando inclusive uma continuação[2] –, mas meu interesse não é discutir sobre o filme em si, em minha opinião já bastante debatido. Desejo apenas analisar uma de suas cenas.

Nela, a personagem principal, uma fotógrafa chamada Amanda (interpretada pela atriz americana Marlee Matlin), encontra-se na entrada de um cinema. Nesse instante, ocorre uma espécie de desdobramento com várias “Amandas” surgindo, ao que parece, do nada. O objetivo da cena é representar as diferentes trajetórias que a Amanda original pode vir a percorrer em sua vida. As consequências que resultarão de qualquer uma de suas escolhas é uma das várias questões abordadas pelo filme. A cena torna-se interessante porque transmite a ideia de todas essas possibilidades estarem coexistindo no mesmo espaço e tempo. É deixado, no entanto, para a personagem a decisão de resolver por qual caminho seguir. E quando finalmente essa decisão ocorre, apenas uma Amanda permanece, com todas as outras desaparecendo – ou como se diz na física “colapsando” – como se jamais tivessem existido.

É, sem dúvida, uma imagem intrigante. Contudo, para mim, ela se tornou especial porque me permitiu refletir sobre a estranheza que a passagem do tempo pode muitas vezes causar. E aqui não estou falando de velhice versus juventude ou da questão da mortalidade. Estou me referindo ao passado propriamente dito: como cada um de nós o vê e o interpreta e, por consequência, como ele pode nos atingir. Quando essa percepção é clara, ela nos ajuda a avaliar quem fomos no dia de ontem em comparação ao que somos no dia de hoje. E o mais importante: nos auxilia a projetar quem queremos ser no dia de amanhã.

Muitas pessoas não veem sentido em reflexões desse tipo. Para elas, o passado tornou-as apenas mais experientes, com rugas no rosto e dores nas juntas. Elas encaram a passagem do tempo como algo natural, com a sensação de estarem apenas um pouco “modificadas”. Entretanto, há aquelas que têm dificuldades em se reconhecer quando resolvem olhar para trás. Consideram-se pessoas diferentes a cada etapa de suas vidas, como se cada momento tivesse sido vivido por alguém distinto daquele que se é hoje. Exatamente como na cena do filme. Cada desdobramento, cada possibilidade, é uma pessoa diferente na linha do tempo. E aqui, quem sabe, a ideia mais adequada nem fosse de uma única linha, mas infinitas linhas se entrecruzando de forma aparentemente desordenada, semelhante a uma teia ou uma rede.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Essa falta de identificação (e até de conexão) com o passado que muitos dizem sentir talvez seja o resultado do não entendimento (ou aceitação) pleno de todas as experiências vividas. Ou, quem sabe, uma maneira de proteger-se contra acontecimentos de um passado obscuro, complicado ou traumático. Estranho? Pode ser. No entanto, é sempre bom lembrar que na vida nem tudo é simples ou fácil de entender ou explicar. Daí a razão da cena do filme ter me impressionado a ponto de, passados quase 20 anos, ainda lembrar dela. Observar aquelas várias “Amandas” precisando escolher entre infinitas possibilidades, fez-me lembrar dos vários “eus” que, em algum momento no tempo e no espaço, já existiram e hoje estão supostamente esquecidos.

Para concluir, preciso dizer que a cena, assim como todo o filme, tenta transmitir uma série de mensagens sujeitas às mais variadas interpretações. É possível, por exemplo, imaginar que as várias “Amandas”, na verdade, não desapareceram, após a decisão ter sido tomada, mas se incorporaram a Amanda “real”. Exatamente como ocorre com muitas das experiências do nosso passado; um motivo a mais para não ignorarmos o que deixamos para trás. É importante entender e aceitar essa parte de nós escondida, muitas vezes, nas sombras. Afinal, para que tenhamos alguma chance de responder à pergunta “Quem somos nós?” precisamos permanecer inteiros, sem temor de encarar o passado, o presente ou o futuro.


[1] Direção: William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente. Roteiro: William Arntz, Betsy Chasse, Matthew Hoffman e Mark Vicente

[2] A versão estendida é de 2006, What the Bleep!?: Down the Rabbit Hole (em português, O que bleep!?: caindo no buraco do coelho).

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