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CEM

Franco Leandro de Souza*[1]

Resumo

Impossível resumir uma trajetória acadêmica como se fosse um artigo científico. Ela é dinâmica e por isso os finais não são conhecidos, apenas imaginados. Como consequência, alegrias e decepções estarão sempre juntas nesse caminho.

Palavras-chave Academia, biodiversidade, Ciência, Curriculo Lattes.

Abstract

It is impossible to summarize an academic trajectory into a scientific manuscript style. It is dynamic and that is why the final remarks are not known but only imagined. As a result, happiness and disappointments will always be together through this way.

Keywords Academy, biodiversity, Curriculo Lattes, Science.

         O início foi algo obscuro e sem muita certeza (ou nenhuma) do que veria nessa trajetória acadêmica. Começou a ficar claro após alguns anos. Foi então que eu vi.

         Vi pássaros, muitos pássaros pela cidade e pelas diferentes florestas, pássaros consumindo frutos verdes em uma época seca (esse foi o meu primeiro) e forrageando pelo campus. Nas mesmas florestas dos pássaros vi pequenos cágados e as diversas maneiras com que utilizavam aqueles pequenos riachos de águas cristalinas e tão frias quanto seus corpos. Vi o que comiam e comiam muitas coisas, o que aparecesse ao longo do ano. Vi que se deslocavam muito pouco e algumas vezes, mesmo sem enxergar as moléculas que constituíam parte de seu código genético, vi que isso foi importante na evolução de uma espécie que pode viver por muito mais tempo do que muitos de nós. Vi que era durante os períodos de chuva que se reproduziam. Entre uma visão e outra desses animais tímidos, também vi a incrível habilidade de esquilos roendo frutos de palmeiras para acessar as partes mais nutritivas, vi que animais podem ser registrados em ambientes até então desconhecidos e que podemos e devemos contribuir para a conservação das espécies. Vi que fatores ambientais e comportamentais restringem a ocorrência de alguns desses animais para certas regiões do Brasil.

Depois de algum tempo comecei a ver também anfíbios e outros répteis, mais aves e outros lugares. Vi sapos, lagartos e serpentes em locais frágeis, com lindas cachoeiras, de uma região ameaçada pela expansão agropecuária; em paisagens planas com imensas lagoas; e em áreas quentes e com infinidade de cactos. Continuei a ver muitas espécies que não sabíamos de suas existências para aqueles locais. Vi que uma espécie de sapo tem tantos matizes que parecem espécies diferentes e que são ávidos por formigas. Vi como o joão-de-barro escolhe os locais para a construção de seus ninhos e como periquitos matam a sede em locais com escassez de água. Vi a diversidade de endoparasitas que vivem em lagartos, vi que lagartos são presas de quatis e que sapos são presas de outros sapos e também de serpentes. Vi como sapos, rãs e pererecas ocupam um ambiente dominado por plantações de arroz. Vi o incrível comportamento reprodutivo de uma rã, em uma região única, que faz seus ninhos em forma de pequenos vulcões, e que sua dieta era à base de cupins e formigas. Vi que nessa região, ameaçada pelo desmatamento, algumas espécies de rãs têm exigências ambientais importantes para permitir suas sobrevivências. Vi as características osteológicas de uma pequena rã e como isso poderia se relacionar aos seus modos reprodutivos. Vi que algumas classificações de vegetação não são boas indicadoras para representar a diversidade de aves e mamíferos em certas regiões e que, para isso, devemos ver em diferentes escalas espaciais. Vi aves em pastos e como a vegetação ao redor era fundamental para elas. De vez em quando revia os cágados e numa dessas vezes vi uma espécie brava, que se alimentava principalmente de invertebrados aquáticos. Aliás, vi que ecossistemas aquáticos são frágeis, exibem diversos organismos que nos indicam se o ambiente está saudável ou não e necessitam colaboração de diversos agentes sociais para sua conservação. Vi que indivíduos da mesma espécie podem exibir nichos distintos, o que pode resultar em competição e variações nas aptidões. Vi que podemos colaborar com um grande número de pessoas para verificar como ocorre a decomposição da serapilheira em diferentes partes do mundo.

         Finalmente, vi que moro na cidade e que nela temos tantas coisas para ver. Vi outros cágados em nossos quintais urbanos sobrevivendo, mesmo machucados, às custas de dejetos que teimamos em jogar nos rios e pequenos invertebrados, aproveitando certos períodos do ano para colocarem seus ovos em formato de bola de pingue-pongue, que vi por meio de raio X. Vi que nas áreas urbanas cigarras são organismos importantes para a ciclagem de nutrientes. Vi que a escassez de locais naturais induz periquitos a tentar usar estruturas inusitadas para fazerem seus ninhos. Vi que em diversos tipos de ambientes podem ser encontradas inúmeras espécies de vertebrados. Vi que aves respondem de maneira diferente à urbanização e que manter distintos tipos de vegetação na cidade pode ser uma prática adequada para termos esses animais junto a nós. Vi que as pessoas podem perder a conexão com as aves à medida que reduzimos as áreas verdes (e esse foi um dos últimos).

         Até chegar ao centésimo, vi os bastidores do ensino e da pesquisa, as sutilezas de um micro-habitat chamado academia, os egos dos pesquisadores. Vi competição. Vi amizades se fortaleceram e se quebrarem. Vi colegas falecerem. Vi que muitos enxergavam a mesma coisa que eu, de modos diferentes. Vi alegria e momentos sem emoção. Vi importância e descartáveis. Vi mais dúvidas do que certezas.

Vi o amor nascer e frutificar. Vi muito mais coisas que ficaram e ficarão apenas na minha memória, porque assim deve ser.

Cem está de bom tamanho embora deverá aumentar um pouco pois continuo vendo, embora de maneira diferente. Depois de mais de trinta anos, a visão está mais clara ao ponto de enxergar inclusive o que não tem mais sentido.

Ainda não consigo ver o caminho a que isso tudo está me levando. Talvez eu ainda esteja tentando me enxergar.

SOUZA, F.L. Cem. Revista Virtual P@rtes. xxxxx


* Biólogo. Professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato grosso do Sul. E-mail: franco.souza@ufms.br

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