Cultura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

OS CAMINHOS DA MEMÓRIA

A cegueira total inspira compaixão. Mas não ameaça ninguém. A cegueira incompleta suscita medo. Mia Couto

Por Margarete Hülsendeger

Moçambique é um pequeno país do sudeste africano banhado pelo Oceano índico a leste e cercado por quatro países: Zâmbia, Zimbábue, Essuatíni e África do Sul. Sua maior cidade é Maputo (capital), seguida por Matola e Beira. Essa última, além de ser o segundo maior porto marítimo do país, é a cidade natal do escritor moçambicano Mia Couto, um dos grandes escritores de língua portuguesa da atualidade.

Mia Couto, cujo nome real é Antonio Emílio Leite Couto, nasceu em 1955, exatamente 20 anos antes de Moçambique conquistar sua independência de Portugal. Esse detalhe biográfico coloca o autor como testemunha de uma guerra que começou oficialmente dia 25 de setembro de 1964 e se estendeu até 8 de dezembro de 1974, resultando, em 1975, na independência de Moçambique. Um conflito no qual o exército de Portugal, apoiado pelos Estados Unidos, enfrentou a guerrilha liderada pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) apoiada, por sua vez, pela União Soviética e a China.

Durante os anos 1970, os combates entre essas duas forças se intensificaram, com milhares de mortos de ambos os lados. Assim, enquanto os guerrilheiros atacavam as comunidades de colonos, cercando cidades e aldeias com minas terrestres, numa tentativa de desacreditar a confiança dos civis nas forças portuguesas, o exército português adotava a estratégia americana de “procurar e destruir” atacando aldeias cujos habitantes se mostravam simpatizantes da FRELIMO. Como resultado, ao longo de mais de uma década de combates, além das vidas perdidas, Moçambique teve seu desenvolvimento econômico e social retardado, o que agravou ainda mais a situação do país. É nesse clima de ódio e violência, vivido pelos moçambicanos durante a guerra de independência, que Mia Couto situa seu último romance, O mapeador de ausências[1].

A história ocorre em dois tempos – 1973 e 2019 – e foi construída com diferentes formas textuais – diários, gravações, entrevistas, cartas, relatórios e ofícios policiais, poemas –, constituindo uma grande colcha de retalhos que o leitor, guiado pela mão do autor, vai costurando até que o quadro esteja completo ou o mais completo possível, pois Mia Couto raramente coloca um ponto final em suas histórias. Na sua maneira característica de narrar, com uma linguagem poética e musical, repleta de frases dignas de epígrafes, o autor conta a trajetória do escritor Diogo Santiago na busca de um irmão desaparecido durante a guerra.

A missão à qual se entrega Diogo é uma viagem pela memória não só de sua família, mas do país onde nasceu e cresceu. Nesse percurso conta com a ajuda de uma mulher, Liana Campos, que entrega a Diogo vários documentos – cartas, relatórios, diários e até poemas – deixados pelo avô, antigo membro do PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), como uma espécie de herança maldita. Liana, como Diogo, também está envolvida na sua própria busca pela mãe biológica e as circunstâncias que determinaram a sua morte. Os dois personagens são o elo com o tempo presente (março de 2019), enquanto os papéis herdados por Liana tornam-se a conexão não apenas com o passado familiar, mas, em especial, com a história da independência de Moçambique.

Por meio da leitura desses documentos ficamos sabendo da repressão bárbara a qual foi submetida a população moçambicana durante o período colonial: censura, prisões arbitrárias, torturas, massacres e, é claro, o racismo sem disfarces. Em um dos excertos do diário de Diogo o leitor descobre, por exemplo, o que ocorreu em uma aldeia chamada Inhaminga:

Quando se aproximou, todos abriram alas. Foi então que vi os corpos amontoados. Eram todos de gente negra, estavam completamente nus e cobertos de poeira. Uma meia dúzia de soldados portugueses fazia guarda àquele macabro cenário. Num letreiro de madeira, afixado na estrada, podia-se ler: “Isto é o que acontece a quem ajuda os terroristas”.

Antes que alguém possa pensar que se trata de ficção, é importante esclarecer que o massacre de Inhaminga realmente aconteceu e nele cerca de três mil pessoas foram mortas e enterradas (algumas vivas) entre agosto de 1973 e março de 1974. Mia Couto utiliza trechos do diário de Diogo, então um adolescente de quinze anos, para contar essa história de terror e violência, na qual estiveram envolvidos soldados do exército português e agentes da PIDE.

Para dar maior força a narrativa, o autor coloca nas mãos de seu personagem ofícios internos da PIDE, datados de 1973. Nesses documentos aparecem orientações para os agentes infiltrados – entre eles um padre católico negro – estarem atentos a todos os movimentos de Adriano Santiago, pai de Diogo, quando chegasse em Inhaminga. Por ser poeta e jornalista, Adriano era considerado uma ameaça e, portanto, precisava ser constantemente monitorado. Há, inclusive, uma solicitação para que, durante a sua permanência na aldeia, a “Operação Chacal Faminto” prosseguisse, mas de “forma bem mais comedida”. Do mesmo modo, em carta dirigida à PIDE e escrita pelo inspetor responsável pelas ações em Inhaminga, a “lógica” da operação fica clara: “[…] os que ainda não fossem terroristas, sê-lo-iam num próximo futuro”. Essa certeza era motivo suficiente para justificar as prisões e os fuzilamentos, com os prisioneiros tornando-se responsáveis por cavar as “suas próprias valas” para, junto delas, serem executados.

A frieza e a objetividade desses informes são brutais, mas junto com essas imagens perturbadoras Mia Couto também nos brinda com personagens cuja principal característica é a resiliência. Um desses personagens é Maniara. A partir de suas declarações, gravadas e transcritas por Adriano, ficamos sabendo da troca que fez da bandeira portuguesa por uma capulana[2] para agradar, segundo ela, os antepassados e assim comprar sua boa vontade para os portugueses. Do mesmo modo, quando acontece o massacre é ela que, fingindo uma dança ritual, fotografa as pilhas de mortos que os soldados empilhavam na praça de Inhaminga. Maniara surge, como em tantas outras obras de Mia Couto, como uma referência de mulher forte, sofrida, mas acima de tudo sábia, capaz de compreender que, muitas vezes, o silêncio imposto às mulheres é resultado do medo que os homens sentem quando elas falam, um medo que se torna ainda maior quando se calam.

O mapeador de ausências é um livro duro porque fala de violência, ódio e preconceitos, mas também é um livro cheio de poesia e esperança. A poesia fica por conta não só do lirismo característico da narrativa do escritor moçambicano, como de versos cujo autor é o personagem-poeta Adriano Santiago. Esses fragmentos funcionam como epígrafes na abertura dos capítulos dando-nos pistas sobre o seu conteúdo. Assim, no capítulo “Juras, promessas e outras mentiras”, quando os papéis da PIDE são apresentados, encontramos a seguinte frase: “As lembranças tornam-se perigosas quando deixamos de as falsificar”. Já em “Uma alma esburacada”, quando Diogo descobre que a vizinha de seus pais era informante da PIDE, lê-se: “Lao Tsé escreveu: ‘a lembrança é um fio que nos condena ao passado’. Talvez seja o oposto: lembrar é o melhor modo de fugir ao passado”.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

No entanto, o que menos se faz em O mapeador de ausências é fugir do passado. Ao contrário. Mia Couto recupera uma das páginas mais duras da história de seu país, uma que marcou muitas vidas, incluindo a do autor, sem minimizar a violência e o ultraje aos quais a população de Moçambique foi submetida durante décadas. Não é por nada que a narrativa se fecha em meio ao ciclone Idai que, em março de 2019, devastou a cidade de Beira, demonstrando, mais uma vez, o quanto a natureza também pode ser impiedosa com o homem. Ler O mapeador de ausências é experimentar a complexidade de sentimentos vividos por pessoas que atravessaram guerras internas e externas e como o passado tem o potencial de idealizar o presente, alterando nosso entendimento do futuro.


[1] COUTO, Mia. O mapeador de ausências. São Paulo: Companhia das letras, 2021 (E-book).

[2] Pano, que os nativos de Moçambique trazem pendente do cinto, dobrando sobre este uma ponta, em que às vezes guardam dinheiro.

Deixe um comentário