Margarete Hülsendeger
Neste país ainda é perigoso um preto parar num lugar remoto apenas para cumprimentar um branco. Nunca se sabe que tipo de branco temos diante de nós.
José Eduardo Agualusa.
O escritor angolano José Eduardo Agualusa é considerado um dos principais nomes da literatura africana da atualidade, ao lado dos sul-africanos J. M. Coetzee e Nadine Gordimer, dos nigerianos Wole Soyinka e Chimamanda Ngozi Adichie, do queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, do congolês Alain Mabanckou e da ruandesa Scholastique Mukasonga. Ele também é uma das grandes figuras da literatura contemporânea em língua portuguesa da África, junto com os moçambicanos Mia Couto e Paulina Chiziane e dos compatriotas Ondjaki e Pepetela.
Como se tudo isso não bastasse, Agualusa tornou-se uma espécie de embaixador informal da cultura e da literatura angolana, principalmente no Brasil e em Portugal. Ele conquistou um público cativo nos países lusófonos, apesar de muita gente, ainda hoje, o confundir com Mia Couto. Na sua trajetória como escritor já recebeu inúmeras premiações entre elas o Prêmio Nacional de Cultura e Artes (Angola), o Grande Prêmio de Literatura da RTP (Portugal), o Grande Prêmio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens (Portugal), o Prêmio Independent na Categoria Ficção Estrangeira (Inglaterra) e o Prêmio Literário Internacional de Dublin (Irlanda).
Desde a publicação de seu primeiro livro (A conjura), em 1989, Agualusa já escreveu um número significativo de obras, muitas delas merecedoras dos prêmios mencionados no parágrafo anterior. Entre essas obras está As mulheres de meu pai, de 2007[1], uma narrativa na qual o autor discute as origens africanas de homens e mulheres que imigraram para a Europa. Para dar voz a esses indivíduos, Agualusa recorre a vários narradores, obrigando o leitor a redobrar a atenção, pois, muitas vezes, parecem estar “falando” ao mesmo tempo. Desse modo, durante a leitura, é preciso filtrar, não com o intuito de excluir, mas de separar essas vozes para depois “ouvi-las”. Ademais, o autor angolano usa e abusa (no bom sentido) de expressões características das várias terras – Portugal, Angola, Moçambique, África do Sul – pelas quais seus personagens transitam, impregnando o texto de uma sonoridade que impele o leitor a ler, em voz alta, palavras, frases e até parágrafos inteiros. Essa característica é reconhecida pelo autor: “Gosto da escrita musical, que tenha ritmo. Eu me preocupo muito com o ritmo da frase. O ideal é que tudo pudesse ser cantado no texto que escrevo, imagino isso”[2].
E ao contrário do que se possa pensar, a preservação da linguagem local não compromete a leitura; na verdade, essa mistura de diferentes idiomas torna tudo ainda mais real e mágico. Agualusa mistura realidade e fantasia de tal maneira que é quase impossível determinar quando uma termina e a outra começa. Imagens absurdamente surreais – como uma galinha que se comporta como um cachorro ou hienas sendo conduzidas a cabresto por anões – compartilham o mesmo espaço com o dia a dia de um país ainda se recuperando de uma sangrenta guerra civil. A combinação desse imaginário estranho e poético com a realidade nua e crua cria uma trama envolvente e bela.
E, é claro, temos os personagens.
Laurentina, mulata portuguesa/indiana, ao descobrir que é adotada inicia uma viagem em busca de seu pai biológico, Faustino Manso, um luandense que viveu da música, com várias famílias espalhadas pela África. Ela é a responsável pela narração de boa parte da história. Algumas de suas observações são colocadas em notas de rodapé, estabelecendo-se entre a personagem e o leitor uma espécie de diálogo paralelo, destacando-se como outro texto dentro do texto principal.
Mandume, ou seria melhor dizer Mariano Maciel, o “preto mais branco de Portugal”, profundamente apaixonado por Laurentina, é filho de pais angolanos, mas se considera um autêntico português, rejeitando suas raízes africanas e qualquer relação com o passado de seus pais em Angola. Seu desconforto, muitas vezes, o leva a repetir, como se fosse um mantra, “Eu não sou daqui. Eu não sou daqui. Eu não sou daqui”.
Bartolomeu, o escritor, com ares de Dom Juan, é o alter ego de Agualusa. Diferente de Mandume, vê-se como o branco mais negro de Angola, um defensor da mestiçagem, pois como ele mesmo diz a mistura de raças tem uma “natureza revolucionária”. Ele, ao lado de Laurentina e Mandume, parte para uma grande viagem pela África – Angola, Moçambique e África do Sul – a procura de Faustino e, consequentemente, de suas origens.
Além desses três personagens, temos ainda os imaginários – Pouca Sorte, Merengue, Alfonsina, Fatita de Matos, Ana Lacerda, Dorothéia, Dário Reis, Anacleta e muitos mais – e os reais – Mia Couto, Sérgio Guerra, Karen Boswall e tantos outros. Todos tendo voz e espaço, ajudando a tecer uma narrativa paradoxalmente simples e complexa.
E quanto ao “grande personagem” dessa história, o músico e mulherengo Faustino Manso? Agualusa utiliza o mesmo recurso de Machado de Assis e revela já nas primeiras páginas que o personagem central de seu livro está morto. Porém, ao contrário do que ocorre em Memórias Póstumas de Brás Cubas, não é o defunto o narrador, mas aqueles que sobreviveram, entre eles suas sete saudosas viúvas.
Faustino Manso – que de manso não tinha nada – era um homem que sabia amar as mulheres e por saber amá-las era amado por elas. Um personagem fascinante que o autor utiliza para demonstrar que a “vida não é cinzenta nem cor-de-rosa”, mas dependente da forma como olhamos para ela. Pelo tom do seu necrológio, no início da obra, pode-se intuir a complexidade desse homem que, ao longo da vida, deixou para trás um número significativo de amores: “Pecado é não amar. Pecado maior é não amar até o fim do amor. Não me arrependo de nada, Tino, meu seripipi. Repousa em paz”. Conclui-se o livro com a certeza que Faustino, em suas andanças pela África, também nunca se arrependeu de nada.
Agualusa, em As mulheres de meu pai, faz poesia usando a narrativa, ao mesmo tempo que fala de sua terra sem esconder a verdade sobre ela. A pobreza esperada de um país africano está lá, em especial nos centros urbanos, onde se concentra a maior parte da história. Porém, percebe-se no autor um otimismo mal disfarçado. É como se ele nos dissesse: “Tudo bem, temos problemas; mas vejam ainda somos capazes de dançar, cantar e rir. Já superamos muita coisa, nos deem tempo e chegaremos mais longe”. Agualusa parece acreditar que os sonhos não podem ser esquecidos ou ignorados; afinal, como ele mesmo diz na sua frase de encerramento, “Leve os sonhos a sério. Nada é tão verdadeiro que não mereça ser inventado”.
[1] AGUALUSA, José Eduardo. As mulheres de meu pai. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2012.
[2] Disponível em: http://g1.globo.com/pernambuco/fliporto/2012/noticia/2012/11/ritmo-simplicidade-e-clareza-compoem-triade-do-escritor-agualusa.html.