* Daniel Medeiros
Quando, no dia 15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclamava a República, várias outras versões de República foram implodidas e seus pedaços jogados para debaixo do tapete. Restou, justamente, a versão de República mais conservadora, a mais autoritária e a menos comprometida com o povo, ironia extrema ao nome do regime político que se inaugurava: res publica.
E não foi por falta de propostas. Desde 1870, quando é fundado o Partido Republicano no Rio de Janeiro e depois, em 1873, na Convenção de Itu, quando surge o Partido Republicano Paulista, correntes radicais buscavam associar a mudança de regime a ações voltadas a acabar com a escravidão e realizar a integração dos negros à sociedade, por meio de instrução e trabalho. Da mesma forma, ideias de fomento à pequena propriedade e à industrialização ficaram pelo caminho. Como sabemos, a República atendeu a três interesses fundamentais: a garantia de autonomia dos Estados, a manutenção de uma política econômica voltada para os grandes proprietários rurais e a ideia de um Estado forte, disciplinado, como tradução formal de políticas de controle e repressão das aspirações a direitos legítimos das camadas populares. É isso que o 15 de novembro representa.
Proclamamos uma República de costas para o povo, não por distração, mas como projeto. O próprio envolvimento do Marechal Deodoro – monarquista convicto – no negócio republicano, visava a garantir a manutenção da hierarquia, visto que o projeto de uma República de efeitos socialmente mais amplos era vista com bons olhos entre os oficiais de baixa patente. Deodoro, assim, exerce a função bonapartista de emprestar a força e o prestígio militar para garantir os interesses e privilégios das oligarquias. Prova disso é que, depois de superadas as dificuldades iniciais, os marechais recolheram-se aos quartéis e os verdadeiros donos do poder assumiram sem intermediações.
A Constituição de 1891 consolida o novo regime, como um espantalho ao qual se coloca uma placa escrito: homem. Agora éramos uma República, mas não éramos. Tínhamos hino e bandeira – e nem isso soube ser original, mas arremedo da bandeira do Império e do hino da abdicação de D. Pedro I – e tínhamos Lei. Verdade que era uma lei que afastava as camadas populares da representação, pois os analfabetos não podiam votar. E, para completar a manobra, o Estado se desobrigava a garantir educação fundamental pública e gratuita. Que ficasse ao “mérito” de cada um.
Até hoje sofremos os impactos da República de ocasião que foi decretada por meio de um golpe militar com as bençãos dos grandes fazendeiros em 1889. Lógico que muita coisa mudou, mas, ao mesmo tempo, o fundamental, na prática, ainda não foi resolvido. Segundo dados do IBGE, os 10% mais pobres do nosso país ficam com apenas 0,8% das riquezas produzidas e os 10% mais ricos, com 42,6% dela. Mais de 50 milhões de brasileiros vivem na pobreza e a falta de saneamento, moradia, educação e saúde de qualidade ainda lembram os tempos sombrios do Império, no qual o Imperador ilustrado e gentil governava um país de cegos, míopes e oportunistas que viraram o rosto constantemente.
Falta-nos a República necessária: inclusiva, social, tolerante, plural, cujo lema, em vez do recorte de frase filosófica emprestada, deveria ser: “equidade e transparência”. Uma República civil e laica, diariamente empenhada em ampliar direitos e sem nunca dormir enquanto há miséria e violência e discriminação. Essa República, quando existir, não terá uma data só lembrada ou brevemente comemorada. Será a nova data do carnaval.
* Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.danielmedeiros.articulista@gmail.com@profdanielmedeiros