O FIM DE UMA HISTÓRIA?
Margarete Hülsendeger
[…] nadie puede evitar la persecución de su sombra. No importa el rumbo, la sombra de lo que hicimos y fuimos nos sigue con tenacidade de maldición.[1]
Luis Sepúlveda
Ele foi um dos primeiros a cair vítima desse vírus que, há mais de um ano, mantém a humanidade em permanente tensão. Um homem de 70 anos que, durante um mês e meio, lutou, com a bravura que lhe era característica, contra uma pneumonia causada pelo novo coronavírus. Falo do escritor chileno Luis Sepúlveda falecido em abril de 2020, em razão de complicações ocasionadas pelo Covid-19, tornando-se o primeiro caso registrado na região de Astúrias, Espanha, onde residia desde a década de 1990.
Com mais de 20 obras publicadas, Sepúlveda transitou por diferentes gêneros: histórias policiais e infantis, fábulas, contos, crônicas e romances. Filho de uma mãe enfermeira de origem mapuche[2] e um pai militante do Partido Comunista, o autor era um socialista convicto e um ativista político. Foi amigo de Salvador Allende e fez parte de sua guarda pessoal (GAP). Em setembro de 1973, Sepúlveda estava ao lado do ex-presidente do Chile, no Palácio de la Moneda, quando ocorreu o golpe militar que levou ao poder o general Augusto Pinochet.
Homem de ideais, de lutas e de geografias diversas, viveu em diferentes países do mundo, viajou e trabalhou no Brasil, Uruguai, Paraguai e Peru. No Equador viveu entre os índios Shuar[3], participando em uma missão de estudos da UNESCO. Morou, durante 14 anos, na Alemanha, onde se casou com Margarita Seven. Após se divorciar, mudou-se para Paris e depois para Gijón (Espanha), onde reencontrou sua primeira mulher, a poetisa Carmen Yàñez, e ali viveu até a sua morte, em 2020.
Muitas dessas vivências estão representadas em sua literatura. Em seu romance mais conhecido, O velho que lia romances de amor (1989)[4], dedicado a Chico Mendes, temos uma narrativa na qual o autor resgata sua convivência entre os índios Shuar. O personagem principal da obra é o velho António José Bolívar Proaño, um aficionado dos romances de amor com finais felizes e um profundo conhecedor dos segredos da floresta amazônica. Na leitura desses romances açucarados, António encontra uma espécie de refúgio que o mantém afastado da estupidez arrogante dos homens que acreditam dominar a selva só porque estão armados até os dentes. Essa ilusão, no entanto, é colocada à prova quando esses mesmos homens são caçados por uma onça. Para resolver esse conflito, o velho António é convocado, pois é o único que, realmente, conhece a floresta e seus habitantes. O fim dessa história é inevitável: António, usando a tecnologia do homem branco, persegue e abate o animal. Assim, em uma narrativa, aparentemente despretensiosa, o autor nos coloca diante da dura verdade de que, enquanto a onça ataca porque está cega pela dor – haviam matado os filhotes e o companheiro –, o homem branco mata pelo simples prazer da matança. Por isso, no final do romance, o choro contrito do velho que ao ver-se diante do corpo sem vida do animal sente-se “indigno, degradado, em nenhum caso o vencedor daquela batalha”.
Sepúlveda, no entanto, sabia da existência de selvas onde o verde está ausente e os predadores são, muitas vezes, mais perigosos e letais do que uma onça. Com base nessa ideia é que ele escreveu O fim da história[5] (2016), uma narrativa urbana que transcorre no momento em que a socialista Michelle Bachelet transfere a Presidência da República para o candidato da direita Sebastiàn Piñera. Nesse romance, o personagem principal é um antigo guerrilheiro que, além de ter feito parte da guarda de Allende, lutou na Nicarágua e foi treinado pelos soviéticos nas táticas de guerrilha. O autor faz uma brincadeira com o seu nome já que ele se chama Juan Belmonte[6], o mesmo nome de um célebre toureiro espanhol, considerado o maior matador de todos os tempos. E é isso que o personagem foi (e veremos que continua sendo), um matador, ou melhor, um sniper muito bem preparado em uma das melhores academias soviéticas, a Academia Rodión Malinovsky[7].
Quando a história começa, Belmonte vive isolado, no sul do Chile, apenas na companhia de Verônica, sua companheira e uma vítima das torturas da ditadura militar, e de um amigo dos velhos tempos de guerrilha chamado Petiso. O romance pode ser lido como um thriller político/espionagem no qual o protagonista é contratado para localizar dois ex-soldados enviados para resgatar da prisão um famoso torturador, descendente dos cossacos, que conhece os segredos dos homens que apoiaram a ditadura de Pinochet. No entanto, o que chama atenção nessa obra não é o enredo, mas o que está por detrás dele.
Belmonte viveu muitos “fins da história”: a ascensão e queda do governo de Salvador Allende, a luta contra as forças da ditadura, as mudanças ocorridas na União Soviética, com os russos passando do comunismo stalinista para um capitalismo selvagem e, finalmente, a transição do governo chileno da socialista Michelle Bachelet para o direitista Sebastián Piñera. As mudanças radicais pelas quais passavam o Chile e o mundo se refletem na forma como Belmonte enxerga seus antigos aliados. Para ele, os ideais tão duramente defendidos deixaram de ter qualquer valor, diante das transformações das quais foi testemunha. A história que ajudou a escrever, com suas ações como guerrilheiro e depois como soldado da União Soviética, já não existe mais, com tudo se perdendo em meio à ganância e a uma sede de poder sem limites.
Outro aspecto interessante da narrativa é o “passeio” pelos porões da ditadura chilena. Sepúlveda nos dá um vislumbre dos horrores que foram praticados no país pelos torturadores de plantão. Contudo, um lugar ganha destaque especial nesse “percurso”: a mansão conhecida como Villa Grimaldi. É o próprio autor que, no final do livro, em um anexo, explica o que lá acontecia: “Villa Grimaldi era o maior centro de detenções ilegais, tortura, assassinato e desaparecimento de pessoas. Estima-se que mais de cinco mil pessoas passaram por esta instalação de
horror, e delas, cerca de trezentas continuam desaparecidas”. Foi nesse lugar que Verônica esteve durante vários meses. Foi nesse inferno que ela enfrentou o torturador chamado “cossaco”. E, apesar de todo o sofrimento a que foi submetida, não delatou seus companheiros, optando por esquecer o “mecanismo que carrega palavras do sentimento à boca”. É esse homem que os russos querem libertar para evitar um suposto incidente diplomático entre o Chile e a Rússia. Belmonte sabe que o cossaco foi o algoz de Verônica e, portanto, deve decidir se vai ou não puxar o gatilho que irá tirar a vida do monstro que emudeceu a sua mulher.
Assim, como fez em O velho que lia romances de amor, Sepúlveda, em O fim da história, revela ao leitor um universo desconhecido ao homem comum. Se no livro de 1989 estamos diante da força e da energia da natureza, representada pela floresta amazônica, na obra de 2016 enfrentamos a tristeza da desilusão e o mal em seu estado mais puro. Nas duas situações a pergunta que Sepúlveda no faz é a mesma: estamos dispostos a pagar o preço de abandonarmos a nossa humanidade?
Luis Sepúlveda (1949-2020) nos deixou, se tornando mais uma entre as muitas vítimas do Covid-19. Contudo, sua obra permanece. Uma obra na qual está presente a voz dos esquecidos, pois, para ele, o bom romance é a “história dos perdedores, porque os ganhadores escreveram sua própria história”. Por esse motivo, seus livros têm a capacidade de nos fazer pensar desde a nossa relação com a natureza até a forma como, muitas vezes, damos poder àqueles que querem nos calar. Sepúlveda nunca se calou e sua vida e seus livros são a prova do seu compromisso com as boas causas.
[1] “[…] ninguém pode evitar que a sua sombra o persiga. Não importa o rumo, a sombra do que fizemos e fomos nos acompanha com a tenacidade de uma maldição.” (Tradução minha).
[2]Um povo indígena da região centro-sul do Chile e do sudoeste da Argentina.
[3] Povo composto de aproximadamente 80.000 indivíduos que vive na floresta amazônica entre o Peru e o Equador.
[4] SEPÚLVEDA, Luis. O velho que lia romances de amor. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
[5] SEPÚLVEDA, Luis. O fim da história. Porto: Porto Editora, 2017.
[6] Esse personagem já havia aparecido em outro romance de Sepúlveda intitulado Nome de toureiro (1994).
[7] Essa academia realmente existiu e estava localizada o distrito de Lefortovo, em Moscou, em um antigo palácio real.
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