Overdose de imagens “canibaliza” pessoas e exige novos debates sobre privacidade, diz professora da USP
Você arremessa o braço em busca do smartphone, com o propósito semiautomático de encerrar o estribilho irritante do despertador. Como já acordou mesmo, aproveita para conferir as atualizações do Instagram, checar os status do Whatsapp e curtir duas ou três fotos do Facebook que surgiram na madrugada. Seus olhos derivam pelo mesmo périplo durante o café da manhã e, provavelmente, estarão lá algumas vezes antes do almoço (para uma parte das pessoas, agora também viajando pela tela do computador). Com a rotação da tarde, você perdeu a conta dos memes, vídeos, gifs, charges, montagens, desenhos e fotografias que atrapalharam – ou foram atrapalhados – pelo seu trabalho. O desenrolar da noite não é diferente, com mais um aluvião de pixels estrelando nas pupilas. E, até mesmo antes de ajeitar o travesseiro sob a cabeça, você dá mais uma espiada na tela e garante que todas essas imagens repousarão de barriga cheia.
Sim, esse amontoado de imagens de smartphones, tablets, computadores e smartvs estará bem alimentado porque vivemos hoje um processo de “canibalização” das telas. Quem usa a expressão é a professora Giselle Beiguelman, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, colunista da Rádio USP. “Nós viramos todos imagens”, observa a docente. “A imagem vem sendo produzida numa escala nunca antes vista na história.”
Nessa era de produção e circulação galopantes das imagens graças aos meios digitais, Giselle chama a atenção para o pulo exponencial que a covid-19 trouxe a essa dinâmica. “Com a pandemia, nós fomos emparedados pela tela”, crava a professora. “Nossa vida passou a girar em torno da nossa produção e consumo de imagens. A pandemia mudou significativamente a maneira como nos comportamos diante da tela. É pela tela que nós, dentro de um recorte de classe muito preciso – esse universo que pode estar confinado na esfera do teletrabalho e do tele-entretenimento –, estamos operando o mundo e sendo operados por ele.”
Nesta sexta-feira, dia 23, às 19 horas, Giselle discutirá essas e mais algumas questões na palestra de abertura da Conferência do Imaginário, evento on-line e gratuito que ocorre entre os dias 23 e 25 e faz parte das atividades de lançamento da plataforma ImageCon. Propondo ações artísticas e discussões pautadas pela presença excessiva das imagens na contemporaneidade e o efeito disso em nós, a plataforma inaugurou seus trabalhos com três noites de projeções mapeadas (videomapping) nas empenas de prédios da região da Rua Augusta, Largo do Arouche e do Minhocão, na capital paulista.
Novos vocabulários
A multidão de imagens que trafega cotidianamente pelos nossos olhos cria um quadro complexo. Ao mesmo tempo em que nos engole e exige nossa transformação em imagem, estabelece novos léxicos para a informação, a arte e o ativismo.
“A proliferação das câmeras via celular e o barateamento de seu custo permitiram que todo um novo vocabulário, que não pertence às escolas tradicionais de arte e cinema, não só fosse produzido como ganhasse um estatuto através das redes sociais e dessa nova autopedagogia na produção das imagens”, considera Giselle. Esse é o caso dos memes, que constituem um dos vocabulários mais importantes da cultura das redes, na opinião da professora, e ganharam ainda mais relevância na pandemia, graças à condução política da crise sanitária.
Giselle caracteriza o meme como uma imagem feita na interlocução com o texto, que reúne humor e ironia à capacidade de ser uma espécie de jornalismo à queima-roupa. “Aconteceu, virou meme. Antes de virar notícia, vira meme”, atesta. “E, muitas vezes, a notícia é notícia porque a circulação de memes sobre determinado assunto foi tamanha que aquilo se transforma em informação de outra qualidade depois.”
Mas os memes não são as únicas manifestações do alargamento da pandemia para o universo das imagens. Com a interrupção de atividades no espaço público, práticas artísticas e ativistas acabaram incorporando a imagem como meio de ação. Como as projeções mapeadas da ImageCon, transmitidas pelas telas, ou o esforço da classe teatral, dos artistas da performance, da música e da dança para continuar a existir apesar do confinamento.
“As artes do corpo, que sempre demandaram a presença física, se reinventaram muito rapidamente”, diz Giselle. “São impressionantes os novos formatos de dramaturgia, de linguagens da dança e do teatro que foram criados nesse processo de impossibilidade de um contato presencial com o seu público.”
“Vigilanciamento”
De acordo com a professora, a série de transformações na produção e na circulação das imagens interfere em nossas vidas não apenas através do que criamos e compartilhamos conscientemente através das redes sociais. Há uma área cuja importância costumamos minimizar e que compreende as imagens feitas “para não serem vistas”. Um exemplo são as imagens de reconhecimento facial, produzidas por processamento com Inteligência Artificial.
Essa dimensão de invisibilidade chega até mesmo às imagens que produzimos e fazemos circular nas redes e é, na análise da professora, instrumental para os sistemas de vigilância. “Quando falamos de imagem digital, nós estamos indo muito além daquela superfície visível. A imagem digital carrega uma série de outras informações codificadas que vão desde a localização e horário em que foi produzida até o caráter relacional do dado digital. Ela pode ser contemplada em uma piscina de dados sobre o sujeito e seu grupo social, que vão dar a essa imagem um novo estatuto.”
O termo que Giselle usa para falar dessa vigilância operada não só pelos sistemas tradicionais e oficiais mas também por aquilo que compartilhamos nas redes é “vigilanciamento” (shareveillance), um neologismo criado pela pesquisadora Clare Birchall. “Tudo que você compartilha é um manancial de informações sobre você e o grupo social em que você se insere”, aponta a professora.
Na era das redes sociais e da compulsão por fabricar imagens e fazê-las circular, a velha ideia do reduto pessoal, da casa como muralha que isola a vida individual da vida pública, torna-se porosa. “Isso faz com que a discussão da privacidade tenha de ser pensada à luz dessa situação contemporânea e em um espectro político que transcende o local e o nacional e remete a esse conjunto de instâncias de novos poderes: as grandes corporações internacionais de tecnologia da informação e entretenimento como o Google e o Facebook”, frisa Giselle.
Conferência do Imaginário
A palestra que a professora fará nesta sexta-feira, dia 23, às 19 horas, integra o painel No Início Era a Fotografia, que contará também com um debate entre a filósofa Marcia Tiburi e o antropólogo Massimo Canevacci e uma entrevista com o fotógrafo Miguel Chikaoka. No sábado, o tema será Linguagem, Criatividade, Diversidade, Conexão e Imaginação e no domingo os encontros terão como tema Depois da Fotografia, o Imaginário.
As inscrições para a Conferência do Imaginário são gratuitas e podem ser feitas pelo site da plataforma ImageCon. A programação completa e a lista de convidados também estão disponíveis nesse endereço.