SEGREDOS OCULTOS
Margarete Hülsendeger
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo.
Guimarães Rosa
Uma sala espaçosa, mantida à meia luz, quadros antigos nas paredes, um altar simples repleto de imagens, um cheiro de incenso no ar. Em pé, Márcia esperava o início da sessão. Nervosa, começava a questionar os motivos que a haviam levado até aquele lugar.
Disfarçadamente olhou para a porta. Em poucos passos estaria na rua e longe de tudo aquilo. Depois, era só ir para casa, tomar um banho e tentar esquecer. Poucos passos apenas. Contudo, um sentimento indefinido de urgência a impedia. Era ele que a mantinha ali, presa e vulnerável.
Sinos. Cânticos. A porta foi fechada. A cerimônia estava prestes a iniciar. Suspirou. O melhor a fazer era se acalmar e agir com naturalidade. Afinal, ninguém a obrigara a nada. Ela pedira o endereço. Ela decidira ir. Ela, apenas ela.
As pessoas à sua volta começaram a cantar. Todas pareciam à vontade, balançando-se no ritmo das melodias. Era como se uma corda invisível manipulasse os seus corpos, tornando-os uma espécie de marionetes. Márcia percebeu que o seu próprio corpo reagia à música, balançando-se de um lado para o outro. Forçou-se a permanecer quieta. Não queria dar vexame.
O incenso passava pela sala. Quem o trazia era uma das ajudantes. Todos estendiam as mãos e se viravam para receber a fumaça em seus rostos e corpos. Quando chegou à sua vez, Márcia não sabia como se comportar. A ajudante a girou com gentileza, espalhando a fumaça sobre ela. Seus olhos arderam e a garganta ficou seca. Teve dificuldades para respirar, mas, lentamente, a sensação de asfixia foi diminuindo até que o mal-estar foi substituído por uma sensação de placidez, como estivesse mergulhada em uma banheira com água morna. Enquanto isso, os cânticos continuaram cada vez mais animados, cada vez mais fortes. Voltou a sentir um pouco de tontura. “É a tensão, o cansaço desses últimos dias”, pensou, tentando racionalizar as estranhas emoções que a dominavam.
De repente, alguém deu um grito estridente. Era uma mulher que se curvando sobre o próprio corpo girava como um pião. O canto da assistência tornou-se ainda mais forte.
Em poucos minutos a mulher se acalmou e, endireitando o corpo, passou a circular pela sala como se estivesse em uma festa. Suas auxiliares correram para atendê-la, levando bebida, cigarros e um chapéu preto com uma enorme flor vermelha espetada nele. Ela recebia todos esses agrados com naturalidade, demonstrando estar acostumada com eles.
Olhando a sua volta, Márcia percebeu que todos esperavam para ser cumprimentados. A mulher, enquanto fumava e bebia, passava um por um, abraçando e, em alguns momentos, parando para conversar. Em breve estaria diante dela. Sentindo o nervosismo crescer, Márcia se preparou para o encontro.
A mulher estava agora bem na sua frente, fitando-a séria. Um calafrio percorreu o corpo de Márcia. “O que eu falo? O que ela quer que eu fale?”, perguntava-se. Como a mulher insistia em olhá-la sem falar nada, ela tomou a iniciativa:
– Boa noite. – Foi a única coisa que conseguiu dizer.
A mulher, abrindo um sorriso, olhou a sua volta.
– Olha como é educada essa menina! Carne fresca é assim. Depois que acostumar com o povo quero ver se continua tão educadinha.
Todos riram. Depois disso, ela continuou a sua ronda. Após um certo tempo, a mulher dispensou a todos com um gesto. Em silêncio, as pessoas, muitas sorrindo, foram saindo.
Márcia não pode deixar de pensar: “Puxa vida! Só isso? Vim de tão longe para ouvir essa cantoria toda e trocar só duas palavras com a tal mulher?”. No entanto, apesar da frustração, também sentiu alívio. Afinal, não havia sido assim tão ruim quanto ela tinha imaginado. Esse pensamento mal tinha se formado quando alguém lhe deu um puxão. Era a mesma ajudante que havia passado o incenso.
– Você não, moça. Você fica. Ela quer te falar.
“Ai, meu Deus” – gemeu por dentro.
A mulher, sentada em uma almofada posta no chão perto do altar, a fitava com um sorriso debochado. Fazendo um gesto com a mão, indicou outra almofada colocada na sua frente. Quando estavam acomodadas, as auxiliares se retiraram.
– Então, minha filha, me diz qual a tua aflição? – perguntou a mulher, sem rodeios.
Márcia não sabia ao certo por onde começar. Pensou em todos os motivos que a levaram até aquele lugar. Diante dela estava o desconhecido, o inexplicável. Se queria ajuda precisava primeiro deixar os preconceitos de lado. Por isso, respirando fundo, decidiu dizer a verdade.
– Vim em busca de ajuda. Não durmo bem. Tenho pesadelos horríveis. Acordo sempre cansada. Estou tensa e angustiada. A minha vida está uma bagunça – disse tudo de um fôlego só, como se falando pudesse se livrar dos problemas.
A mulher olhou bem no fundo dos olhos de Márcia e inesperadamente soltou uma gargalhada, como se tivesse ouvido uma grande piada.
– Não se preocupe filha, loucos todos nós somos. Mas a moça veio ao lugar certo. Aqui a loucura tem uma explicação. Não há porque ter medo. – E sem esperar um convite ela colocou a mão sobre a cabeça de Márcia e gritou bem alto.
O mundo começou a girar. Uma estranha moleza tomou conta de seu corpo e de sua mente. Sentiu que voava. A última coisa da qual se lembra foi a de se ver rodopiando no meio da sala, juntando a sua risada a daquela estranha mulher. Depois foi só escuridão.