ABSURDIDADES BRASILEIRAS
Margarete Hülsendeger
A época mais obscura é hoje.
Robert Louis Stevenson
Quando comecei a escrever este texto (22/03/2021) o mundo já registrava 2.726.513 mortes por Covid-19, sendo que 295.425 ocorreram apenas no Brasil. Nessa mesma data a pandemia já completara um ano, enquanto a vacinação ainda não atingira um número suficiente de pessoas para alcançar o que os infectologistas chamam de imunização de rebanho. Como resultado, milhões de pessoas em todo mundo continuam lutando por suas vidas em emergências de hospitais superlotadas. Por isso, médicos, esgotados e estressados, repetem à exaustão que é preciso pensar em estratégias que mantenham o sistema de saúde – público e privado – operando, já que o colapso é iminente. Estratégias que levem em consideração a preservação do maior número possível de vidas.
Na contramão daquilo que as autoridades médicas recomendam, o Brasil tem se mostrado um exemplo a não ser seguido. Desde que o estado de pandemia foi declarado, coisas muito estranhas, até grotescas, passaram a ocorrer na “terra do futebol”. A primeira delas é a reiterada afirmação de que o Covid-19 é apenas uma “gripezinha” e que o cidadão deveria deixar de “mimimi” porque, afinal de contas, é fundamental manter a economia funcionando. Esse negacionismo criminoso foi o responsável pelo atraso na assinatura de contratos de compra com as indústrias farmacêuticas que estavam pesquisando uma possível vacina. Assim, enquanto outros países se preparavam, com meses de antecedência, para imunizar sua população, o governo brasileiro envolveu-se em discussões bizarras, carregadas de preconceitos ideológicos anacrônicos. Como consequência, hoje muitos países se negam a permitir a entrada de brasileiros em seus territórios, desconfiados de eles estarem carregando em seus corpos um vírus mortal. E quem pode condená-los. Não podemos esquecer que a gravidade da doença vem sendo negada de forma sistemática, um ato que combina três “is”: irresponsabilidade, incompetência e idiotice.
O negacionismo, no entanto, tem muitas faces. Uma delas é produto puramente nacional, ou seja, só foi observada no “país do carnaval”: a divulgação de que existiria um tratamento preventivo contra o Covid-19. Para defender essa tese, milhões de reais foram gastos na compra de uma substância chamada cloroquina. Milhões. Segundo seus defensores, esse medicamento seria uma espécie de barreira milagrosa contra essa “gripezinha”. Contudo, basta uma busca rápida no Google para descobrir que a substância é recomendada apenas para o tratamento e profilaxia da malária em regiões onde essa doença é suscetível ao seu efeito. A palavra grifada indica que até mesmo em alguns tipos de malária a cloroquina também não tem eficiência garantida.
Até o momento, nenhum país ou agência de vigilância sanitária no mundo endossou o uso desse, ou de qualquer outro, remédio como “tratamento preventivo” do Covid-19. Nenhum. E sabe por quê? Por que não existe tratamento preventivo. Entretanto, uma campanha maquiavelicamente orquestrada tem vendido essa mentira. Utilizando as redes sociais, em vídeos e textos falaciosos, supostos profissionais da saúde têm exigido que “kits preventivos” sejam distribuídos por prefeitos e governadores em postos de saúde e hospitais. E alguns gestores não só se dobraram a essas “exigências”, como se tornaram defensores e divulgadores desse falso tratamento. Um exemplo daquela velha máxima de que uma mentira várias vezes repetida se torna verdade.
Outra face desse negacionismo perverso é o pensamento simplista de que no combate ao Covid-19 basta abrir mais leitos hospitalares. A ignorância mal intencionada de pseudoautoridades deixa de lado o fato de que os doentes graves não precisam de um simples leito de hospital. Eles requerem um leito de UTI completamente equipado, ou seja, com respiradores e monitores. E não só isso. Esses pacientes também necessitam estar acompanhados por profissionais devidamente treinados no manejo desses equipamentos. A falta de conhecimento na utilização de um respirador, por exemplo, pode causar a morte de um paciente. Portanto, não será a multiplicação de leitos ou de hospitais de campanha que salvará as pessoas ou diminuirá a pressão sobre o sistema de saúde.
Você sabe o que reduzirá de forma significativa as internações e as mortes? Vacinas! Vacinas chinesas, americanas, russas, inglesas, alemãs, indianas! Vacinas, em grandes quantidades, para imunizar toda a população.
Sim, coisas estranhas acontecem na “terra do samba e do fio dental”. E não é de hoje. Notícias falsas difundidas pelas redes sociais têm mais peso sobre o comportamento das pessoas do que os pareceres de especialistas e doutores. Vivemos uma realidade paralela na qual muitos preferem acreditar nas mensagens absurdas, enviadas pelo WhatsApp ou Twitter, ao invés de procurar fontes confiáveis de informação. A ignorância e o obscurantismo se tornaram moeda corrente nos tempos sombrios que vivemos. E junto com eles vemos o ódio e a raiva, quase animalesca, marcando tudo o que possa ser diferente e a todos que ousem contradizer os discursos que a cada dia tornam-se mais radicais e virulentos.
O Covid-19 tem sido um flagelo de dimensões catastróficas. Viver em meio à ameaça constante, com medo de abraçar e ser abraçado, é uma experiência que não esqueceremos tão cedo. No entanto, o que mais abala é observar o quanto essa doença relevou sobre nós como indivíduos e como grupo. O verniz que cobre a nossa civilidade está descascando e por debaixo dele encontramos duas figuras muito conhecidas, o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde. A velha dicotomia entre o bem e o mal, sempre presente nos mitos da sociedade ocidental. A questão é saber qual dessas imagens prevalecerá: o médico ou o monstro? Como tudo se resume a escolhas esperemos que possamos nos decidir por um caminho que nos permita olhar no espelho sem as manchas da vergonha e do remorso.
Para que fique registrado quando termino de revisar este texto (05/04/2021) já são 2,8 milhões de mortes em todo o mundo e 333 mil no Brasil. Confira esses números quando fizer a sua leitura e ore para que eles tenham diminuído.