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UM JARDIM SEM FLORES

Margarete Hülsendeger

Todas as crianças pagam um preço, e o perdão significa esquecer também o preço que se pagou.

Philip Roth

“Não matei meu pai, mas às vezes tinha impressão de que o havia ajudado a ir desta para melhor”. Assim começa o livro Jardim de cimento[1] do inglês Ian McEwan. Um livro instigante, perturbador e, de alguma forma, diferente dos outros romances do autor. É difícil dizer onde reside essa diferença; talvez esteja no tema ou, quem sabe, na idade do narrador, um adolescente chamado Jack. De qualquer maneira, é a partir do ponto de vista desse adolescente que McEwan vai aos poucos delineando a dinâmica de uma família aparentemente comum, mas tão cheia de segredos que o “comum” torna-se, rapidamente, bizarro e, em alguns momentos, grotesco.

A presença do macabro com algumas pitadas de humor negro pautam o estilo de Ian McEwan. Além disso, ele também sabe ser provocador e mordaz, com uma escrita fascinante e repleta de imagens que são, ao mesmo tempo, assustadoras e sensuais. É com base nessas características que já no início de sua carreira como escritor recebeu o apelido de “Ian Macabro”. No Jardim de cimento todos esses traços estão presentes, confirmando porque McEwan converteu-se em um dos mais importantes escritores de sua geração, inclusive, com diversas de suas obras sendo transpostas para o cinema.

A história de Jardim de cimento inicia após o falecimento do pai de Jack, um evento marcante se sua morte não parecesse “insignificante quando comparada ao que veio depois”. E será esse “depois” que determinará o amadurecimento emocional, não só do narrador, mas de todos os personagens que fazem parte dessa narrativa. O “antes” ou, como diz Jack, a “historinha” da morte do pai é importante apenas na medida que serve para explicar como ele e seus irmãos tinham uma grande quantidade de cimento à sua disposição. Desse modo, desde os parágrafos iniciais, McEwan cria um clima de tensão, combinado com um certo desconforto, que irá acompanhar o leitor até o final do livro.

As descrições dos personagens e das cenas, de um modo geral, são objetivas, quase cinematográficas. Sua linguagem segue o estilo pelo qual o autor ficou conhecido: é concisa, seca, sem voos líricos e quase ausente de adjetivos. McEwan se esforça em descrever um universo no qual a realidade surge como se estivesse debaixo de uma lente de aumento, destacando as imperfeições de um mundo aparentemente “normal”. Com uma prosa simples, sem ser superficial, ele vai desvendando as sutilezas e os jogos de poder de uma típica família inglesa.

Assim, um dos primeiros personagens apresentados ao leitor é o pai, um homem frio e, muitas vezes, cruel na sua relação com os filhos; um pai distante e, segundo a descrição de Jack, irascível e obsessivo. O rapaz, contudo, não procura justificá-lo contando histórias que possam redimi-lo aos olhos do leitor. Do mesmo modo, não o transforma em um completo vilão, imputando a ele defeitos ou pecados injustificáveis. E apesar de Jack claramente odiar o pai, esse fato, estranhamente, não chega a influenciar o leitor, que passa boa parte do livro conjecturando sobre as razões não explicitadas de tal ódio.

No outro extremo desse espectro familiar temos a mãe, uma mulher que se esforça em preencher as carências deixadas por um marido distante emocionalmente. Na maior parte do tempo mostra-se submissa aos seus desejos, transformando-se em uma barreira que se interpõe entre os filhos e as explosões do marido. De qualquer forma, mesmo tendo personalidades e atitudes opostas, os dois (pai e mãe) vão contribuir, cada qual à sua maneira, para os eventos que serão desencadeados na história, influenciando, mesmo que silenciosamente, as decisões tomadas pelos filhos.

E quanto aos demais personagens? Como Jack vê seus irmãos e a ele mesmo?

Julie, a irmã mais velha, é, no início da narrativa, a pessoa mais próxima de Jack. O relacionamento dos irmãos está tão impregnado de tensão sexual que o leitor começa a se perguntar se as insinuações de uma relação física não seria apenas uma das várias fantasias de Jack. No entanto, até mesmo essa suposta conexão se rompe quando o que “veio depois” os atinge. Julie, ao assumir o papel da mãe na dinâmica familiar, desperta a fúria de Jack e os dois passam a se enfrentar em uma batalha de vontades na tentativa de demonstrar quem tem mais poder e, portanto, maior capacidade de decisão sobre os destinos dos outros irmãos.

Sue, mais nova que Jack, é uma menina sensível e a única que “sem dúvida chorou” quando os enfermeiros da ambulância levaram o pai envolto em um cobertor “de um vermelho vivo”. Quando o que “veio depois” se abateu sobre a família, sua forma de fuga foi trancar-se no quarto para escrever. Ao ser questionada por Jack sobre o que ela tanto escrevia, Sue simplesmente responde: “Nada. Só escrevendo”. McEwan nos dá poucas informações sobre esses escritos, mas eles confirmam que Sue foi, dos quatro irmãos, a mais afetada por tudo o que veio a acontecer “depois”. A escrita torna-se, então, a forma encontrada pela personagem de extravasar o estresse e a ansiedade, ao mesmo tempo que lhe permite criar um universo no qual se sente segura e em paz.

Tom é o irmão caçula. Depois de Sue é o personagem mais sensível da história. Protegido da mãe, era constantemente repreendido pelo pai e sem nem mesmo saber competia com ele pelo carinho e atenção materna. Quando Jack pergunta a Julie quem venceria essa competição, ela não hesita em responder, “Tom, obviamente, e papai vai descontar nele”. Devido à sua sensibilidade, inteligência e gosto de “discutir por qualquer coisinha”, Tom era vítima, não só do pai, mas também dos colegas de escola. Seus temores transparecem na maneira como escolhe se vestir, sempre usando roupas femininas, pois acredita que ao imitar uma menina não precisará se proteger da violência.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

E, finalmente, temos Jack. Um adolescente com os hormônios em alta, nutrindo sentimentos incestuosos pela irmã, sem conseguir entender o que tudo aquilo realmente significa. Um adolescente que expressa sua revolta não tomando banho, abandonando os estudos e que tem como válvula de escape suas fantasias masturbatórias. Os dilemas de Jack são os dilemas normais de um adolescente atormentado pelos problemas característicos dessa fase da vida. Contudo, se a esses problemas adicionam-se todos os eventos que se abaterão sobre a família temos a receita perfeita para que algo fora do comum venha a ocorrer.

O título do livro, Jardim de cimento, poderia ser considerado um personagem, pois ele também conta uma história. Talvez o leitor acredite ter descoberto nas primeiras páginas o enigma por detrás dela, mas aviso, não é assim que Ian McEwan constrói suas ficções. Em seus livros sempre há diversas camadas de sentimentos que, ao serem desvendadas, se tornam responsáveis pela construção de tensões reveladoras e a descoberta de segredos bizarros e desejos conflitantes. Jardim de cimento é um romance perturbador. Talvez você tenha a tentação de suspender a leitura apenas para poder respirar, mas não desista. Faça uma pausa e depois retorne, pois, sem dúvida, se trata de uma narrativa instigante, ideal para leitores que não temem desafios.


[1] McEwan, Ian. O Jardim de Cimento. Tradução Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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