Daniel Medeiros*
Há algumas semanas tive uma discussão e perdi a razão. Fiquei nervoso e, quando percebi, estava escolhendo frases que eu sabia seriam capazes de provocar mágoa. Também estava me sentindo magoado, mas o que me importava naquele momento era fazer o meu interlocutor sofrer sem notar que a dor que eu estava sentindo eu não deveria querer para ninguém. Desnecessário dizer que não houve nenhum ganho nessa discussão, nenhuma mudança no mundo, nenhuma redenção dos pecadores. Apenas dois corações enlutados por palavras duras e levianas e todo um futuro de amizade e carinho em risco.
Esse é o mal que a raiva faz. E estamos, como sociedade, intoxicados dessa raiva, embebidos dela, encharcados. Uma mera desatenção e já ela se põe em ação, subindo pelo esôfago, arranhando a garganta, queimando os lábios para se expor em frases cheias de arestas pontudas. A senha é dizer algo com o qual não concordamos, é defender teses que negamos, é elogiar pessoas que detestamos ou criticar nossos ícones sagrados. Nem passa mais por nossa cabeça o direito de discordar, de ter opinião, considerando que a opinião é como um parque para crianças, ninguém está ali para levar nada a sério, porque as coisas realmente sérias são as que são demonstradas, fundamentadas e não apenas ditas ao vento. Mas levamos a sério. E tudo, em um segundo, desanda.
Estamos sendo abduzidos por frases e ideias que deveriam ser apenas frases e ideias. O mundo sempre foi assim, isso é um fato. A Alemanha abraçou Hitler e foi a mesma Alemanha que construiu uma das mais sólidas democracias do Ocidente. Nós mesmos saímos às ruas para pedir liberdade para votar para presidente e depois para derrubar uma presidente democraticamente eleita. O que estamos deixando de perceber é que esse “nós” é sempre cheio de “eus” diferentes, bem diferentes, não há nada que possamos fazer. Nossa percepção das coisas é como um poliedro de espelhos com mil faces e, por isso, nunca formamos a mesma imagem das coisas. Tudo é cheio de nuances. Nada mudará isso. Pelo contrário, quanto mais quisermos quebrar os espelhos dos outros, mais a retórica deles será o de quebrar nossos espelhos, até que ficaremos só os cacos de um povo, de uma nação. Uma vendetta sem fim, até que não sobre um único filho vivo de família alguma, todos amaldiçoados por pensarem diferente.
Em algum momento é preciso que haja uma esquina nessa avenida de horrores. Uma inflexão necessária que resgate os valores que estamos pisoteando com nossa raiva, como a paciência, a compreensão, a busca incessante pelo diálogo, a espera, a ação para enraizar as ideias que acreditamos e não para destruir as que nos incomoda. Quando damos conta, estamos todos plantando ervas daninhas, criando bichos peçonhentos, dispostos a rir do que, ao mesmo tempo, abominamos que o outro ria, como se um jogo de bola com uma imitação da cabeça do presidente pudesse ser engraçado sob qualquer circunstância.
Há pouco consegui retomar o contato com a pessoa com quem briguei. Pedi desculpas pelos meus desaforos e prometi melhorar como pessoa. Não me importa se isso é uma vontade dele também. Não estabeleci reciprocidade ou qualquer outra condição. Sou eu quem preciso fazer alguma coisa para que, algum dia, possamos voltar a reconhecer, em casa, nas ruas, as imagens e os gestos com as quais nos identificamos. Ou seremos somente um bando de beduínos cegos perdidos em um deserto sem fim.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@
@profdanielmedeiros