DE KAFKA AO BREXIT
Margarete Hülsendeger
Como foi comprovado, não é fácil ser Homo sapiens sapiens. Seus desejos muitas vezes estão em conflito com a sua inteligência.
Ian McEwan
Apesar de ter deixado em testamento instruções explicitas para que sua obra fosse destruída após a sua morte, Max Brod (1884-1968) ignorou o pedido do amigo publicando, entre 1925 e 1935, todo o material que Franz Kafka (1883-1924) havia deixado em suas mãos. Desse modo, obras como O processo (1925) ou O castelo (1926) – com capítulos sem numeração ou inacabados, frases incompletas e ambíguas – foram organizadas por Brod, com base em cartas e diários do próprio Kafka, para serem publicadas na forma de romances. No entanto, nem toda a obra do escritor austríaco veio à luz quando ele já estava morto. Esse é o caso de um de seus contos mais famosos, A metamorfose[1], publicado em 1915 na revista literária Die Weißen Blätter.
Para quem não conhece esse conto, uma brevíssima resenha. Um belo dia o caixeiro-viajante Gregor Samsa acorda e percebe que havia se transformado em um inseto monstruoso. Pela descrição feita por Kafka pode ser um besouro ou até uma barata. A determinação do tipo de inseto é o menos importante, pois a ação se centra nos comportamentos dos personagens diante dessa situação inusitada. Gregor, por exemplo, ao perceber a transformação tentará agir normalmente, inclusive, preocupando-se em não chegar atrasado ao trabalho, pois tem medo de perder o emprego. A nova condição do personagem central afeta todo o ambiente familiar, que primeiro exclui Gregor, depois desumaniza-o e, por fim, passa a vê-lo e tratá-lo como um animal e não mais como um filho ou um irmão. Pode-se dizer que a crueldade vai em um crescendo até que o caixeiro-viajante transformado em inseto é abandonado à própria sorte. A força do conto está em apresentar uma descrição impiedosa e cruel de como o ser humano age com aqueles que são, de alguma forma, diferentes.
E o Brexit? Qual a sua relação com conto de Kafka?
A resposta você poderá encontrar no último livro do escritor inglês Ian McEwan. A obra tem o título sugestivo de A barata[2] e sua conexão com o conto de Kafka já pode ser percebida na frase de abertura: “Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca”. Apesar dessa ligação evidente, McEwan marca a sua narrativa com algumas diferenças significativas. A primeira delas, a mais óbvia, é que enquanto no conto de Kafka um ser humano transforma-se em inseto, no romance de McEwan um inseto, no caso uma barata, metamorfoseia-se em um ser humano e não em qualquer ser humano, mas no Primeiro Ministro do Reino Unido. Outra diferença é que se no conto de Kafka apenas Gregor Samsa passa pela metamorfose, no romance de McEwan várias baratas se transformam em seres humanos, todas ocupando cargos importantes no gabinete do Primeiro Ministro. E, por último, se no conto Samsa é excluído por ser diferente, no romance quem é afastado, por não querer se comportar como as baratas, é o ser humano.
Com a sua proverbial mordacidade, com toques de humor negro e grandes pitadas de sarcasmo, McEwan coloca em evidência a estupidez da classe política, assim como os artifícios aos quais ela recorre para se manter no poder. O tom da narrativa já transparece no breve alerta que antecede a história: “Este conto longo é uma obra de ficção. Como os nomes e personagens são produto da imaginação do autor, qualquer semelhança com baratas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência”. Por mais genérico e “inocente” que seja esse alerta, assim que iniciamos a leitura, identificamos, sem maiores dificuldades, as “baratas reais” referidas por McEwan.
Essa ideia fica evidente na construção do personagem Jim Sams. As preocupações de um simples barata – encontrar comida e não ser esmagada por uma roda de carro ou a sola de um sapato – são substituídas pelas maquinações de um Primeiro Ministro que estabeleceu como meta de governo implementar uma teoria econômica chamada “reversionismo”. Segundo essa teoria, o fluxo de dinheiro deveria mudar de direção, ou seja, as pessoas pagariam para trabalhar, ao mesmo tempo que receberiam para comprar. Para atingir seu objetivo, Jim Sams mobiliza o gabinete ministerial no sentido de criar formas de convencer não apenas a população do Reino Unido, mas os países com os quais comercializa. O único governo que se mostra interessado e até disposto a participar dessa “grande mudança” é o governo americano, na figura de seu presidente Archie Tupper. Sams acredita que Tupper pode ser “dos seus” quando lê seus comentários no Twitter, uma espécie de versão primitiva do “inconsciente ferormônico”. Porém, para infelicidade de Sams, Tupper é obrigado a recuar quando seus conselheiros apontam os problemas do plano econômico britânico.
As manobras orquestradas pelo Primeiro Ministro Jim Sams iniciam pela criação de um grupo de “vigilância” cuja função é relatar qualquer “colaborador” que estivesse em desacordo com novo plano econômico, aqueles que fossem descobertos seriam desacreditados diante da opinião pública e retirados de seus cargos. A finalidade dessas e de outras manobras é criar uma trama de mentiras e difamações sem precedentes na história moderna. Como resultado, notícias falsas são fabricadas para desacreditar oponentes internos e externos. Contudo, apesar do “reversionismo” ter conquistado muitos apoiadores dentro do Reino Unido, os outros países rejeitam completamente a ideia e a Inglaterra termina por isolar-se do resto do mundo.
E o Brexit? Onde ele se encaixa?
A ficção criada por Ian McEwan reproduz, de certo modo, os eventos que caracterizaram a saída do Reino Unido da Comunidade Europeia: (1) divisão dentro do Parlamento, desencadeando o pedido de adiamento da sua reabertura, uma clara manobra para desarticular a oposição; (2) derramamento de Fake News nas redes sociais, com o propósito de manipular a opinião pública; e (3) dissolução do Parlamento e a convocatória de novas eleições, cujo resultado foi a vitória esmagadora dos conservadores. Todas essas ações levaram a realização de um referendo popular no qual 51,9% dos britânicos se manifestaram a favor do Brexit. Os efeitos desse processo são, até o momento, difíceis de prever, mas os analistas apontam que entre eles está a forte queda da libra esterlina e a potencial redução da capacidade de negociação do Reino Unido com os demais países da Europa. E, é claro, o isolamento.
Todos esses elementos estão presentes na narrativa concisa e contundente de McEwan. A barata é um livro que expõe a assustadora degradação da classe política e, por consequência, os perigos que isso acarreta. Eu iria ainda mais longe ao dizer que a ficção de McEwan está em completa sintonia com os tempos obscuros que estamos vivendo. Tempos nos quais predomina a “velha política” que, ao utilizar um discurso moralista, retrógrado e até fascista, coloca em evidência os conchavos e as mentiras que parecem constituir a espinha dorsal desse tipo de jogo político. A perplexidade e a indignação de McEwan não são apenas dele, mas de todos aqueles que não compactuam com projetos de poder que têm como único propósito o ganho de poucos em detrimento dos interesses de muitos. Leia A barata e também leia A metamorfose. Você vai se surpreender.
[1] KAFKA, Franz. A metamorfose. Tradução Raquel Abi Sâmara. São Paulo: Planeta, 2019 (144 p.)
[2] MCEWAN, Ian. A barata. Tradução Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das letras, 2020 (104 p.)
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