história

Como “Crash” e “Cronicamente Inviável” denunciam as hierarquias sociais

Como “Crash” e “Cronicamente Inviável” denunciam as hierarquias sociais

 

Weslley da Silva Martins*

 

 

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar os filmes “Crash – No Limite” e “Cronicamente Inviável”, com o intuito de utilizar os exemplos representados nos filmes para ilustrar situações reais em que as hierarquias sociais estruturais segregam e oprimem os sujeitos e, a partir disso, propor algumas reflexões acerca das características desse sistema-mundo, como ele se perpetua e o que se pode fazer para desconstruir tais estruturas.

Palavras-chave: Sistema-mundo. Multiculturalismo. Hierarquia social. Identidade.

Abstract

This article aims to make a brief analysis of some fragments of the films “Crash” and “Chronically Unfeasible”, in order to use the examples represented in the films to illustrate real situations that the structural social hierarchies segregate and oppress the subjects and, from this, to propose some reflections about the characteristics of this world-system, how it perpetuates itself and what can be done to deconstruct such structures. Keywords: World-system. Multiculturalism. Social hierarchy. Identity.

 

Mudando o sistema-mundo

A estrutura da nossa sociedade é uma construção histórica. Ramon Grosfoguel afirma que essa estrutura é formada por um conjunto enredado de paradigmas impostos ao mundo durante o colonialismo moderno, um “sistema-mundo”, que por característica, hierarquiza a sociedade em classes, sexo, raça, ou como o autor cita um “sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno” (GROSFOGUEL, 2009, p.118). Identificar esses fatores é essencial quando buscamos entender porque agimos como agimos e por que pensamos como pensamos, compreendendo que as hierarquizações estão enredadas em nosso tecido social, pois fazemos parte desse sistema mundo.

Assistindo ao filme Crash – no limite (2004), obra estado-unidense dirigida por Paul Higgs, pude identificar o resultado de algumas destas hierarquizações, materializadas no cotidiano na forma de preconceitos. É uma obra densa, rica em detalhes que busca trazer a realidade vivida por pessoas de diferentes grupos sociais na cidade de Los Angeles, que assim como retratada no filme, é uma cidade extremamente multicultural. Nos limites desse texto tratarei da trajetória de apenas um personagem em três momentos principais e buscarei, por meio dessas cenas, exemplificar de que maneira os preconceitos, nesse caso o racismo, são danosos para a sociedade.

Tom Hansen (Ryan Phillippe), um jovem policial, passa por todo o filme tentando ser diferente do modus operandi da corporação, logo no início se depara com uma situação de racismo e abuso cometida por seu colega de trabalho, tenta denunciá-lo, mas é barrado por seu superior, Tenente Dixon, que prevê problemas demais na acusação, Dixon é negro e não quer ser enxergado como tendencioso. Sistema cruel, mas que apenas reflete a maneira com a qual essa sociedade multicultural retratada decidiu lidar com suas diferenças.

O sociólogo Stuart Hall (2003) define as diferentes maneiras de lidar com os problemas de diversidade provocados em sociedades multiculturais como multiculturalismos, no plural, pois Hall atenta que o próprio termo multiculturalismo é polissêmico, sendo assim, resultados diferentes seriam alcançados a depender da estratégia política adotada. Para Hall, a melhor forma de lidar com esses problemas é agir de maneira incisiva na causa do problema, usando do “multiculturalismo crítico” para questionar e alterar a percepção sobre as hierarquias opressoras, sobre o poder e sobre os privilégios, transformando esse sistema-mundo (HALL, 2003, p.53).

Num segundo momento, Tom Hansen busca fazer a diferença ao não julgar um homem negro que estava dirigindo um carro, Cameron Thayer (Terrence Howard), apenas por ser negro. Essa cena é complexa, pois em seu plano de fundo vemos diversos policiais com armas apontadas para Cameron enquanto Tom se coloca no meio da cena e tenta acalmar de ambas as partes. Cameron se enxerga em uma situação difícil, já é a segunda vez que ele é abordado de maneira violenta e a justificativa para isso é a percepção racista por parte dos policias. O policial Tom Hansen consegue resolver a situação sem violência, mostrando que Cameron não iria agredir ninguém desde o princípio.

No terceiro, o policial Tom dá uma carona para um jovem negro que está andando no frio à noite, e tudo parece bem até que tom nota algo estranho no comportamento do menino e começa a agir com ignorância mandando-o descer de seu carro, nesse ponto o jovem coloca a mão no bolso e diz que mostrará a Tom o porquê de estar rindo, sem pensar tom atira no garoto para se proteger, em seguida percebe seu rude erro ao ver que o que estava no bolso do menino era apenas uma imagem esculpida de um santo católico, o mesmo que o próprio Tom utiliza em seu carro. O policial mata o jovem negro inocente, Tom ao perceber sua situação oculta o corpo e foge do local.

Esse é principal exemplo de como o racismo é um problema estrutural da nossa sociedade, ocorre mesmo quando não se trata de pessoas racistas. Anibal Quijano faz uma analogia entre Dom Quixote e os moinhos de vento para exemplificar essa transição de pensamento dizendo que “o novo não acabou de nascer e o velho não terminou de morrer” (QUIJANO, 2005, p.10), mostrando que além de denunciar esses problemas devemos principalmente buscar suplantá-los.

O que Hall (2003) chama de “multiculturalismo crítico” é trabalhado melhor por Peter McLaren, ele diz que para que se consiga esse multiculturalismo crítico ou revolucionário, deve-se primeiramente fazer reconhecer as condições de privilégios, o autor reforça o papel da educação nesse sentido dizendo que o uso de uma pedagogia crítica seria capaz de transformar essa concepção hierarquizada do mundo para algo mais igualitário (MCLAREN, 2000).

Trabalhar e viver com essa perspectiva crítica é um exercício constante de alteridade, devemos, sobretudo enxergar o outro, nos colocarmos em seu lugar para que se possa lutar por uma sociedade multicultural (ou para McLaren: Gringolândia) mais igualitária. McLaren defende que a nossa vida deve ser usada a serviço dos outros, não por valores abstratos, sendo assim ao pensamos em uma sociedade multicultural devemos pensar nas pessoas, nas desigualdades que sofrem e apenas assim poderemos “dar um conteúdo revolucionário à vida na Gringolândia pós-moderna” (MCLAREN, 2000, p.281).

 

O lugar epistêmico e a identidade

Ramon Grosfoguel desenvolve os conceitos de “lugar epistêmico” e “lugar social”. Para o autor, o fato de alguém fazer parte do lado subalterno das relações sociais de poder não significa que ela pense a partir de um local epistêmico subalterno, Grosfoguel (2009) argumenta que é justamente o sucesso do “sistema-mundo colonial/moderno” que faz com que sujeitos que fazem parte de grupos subalternos passem a pensar de maneira dominante, ou seja, um sistema-mundo que hierarquiza saberes (GROSFOGUEL, 2009, p.119).

Assim sendo, decidi exemplificar de que maneira isso ocorre ao longo do filme Cronicamente Inviável (2000), dirigido por Sérgio Bianchi. Uma obra nacional que busca agrupar diversas realidades e evidenciar as desigualdades e seus resultados na sociedade. Pela complexidade da obra optei por trabalhar com apenas uma cena, para desenvolver melhor os aspectos da identidade e do local epistêmico trabalhados nos textos e em sala de aula.

A cena em questão mostra uma gerente de restaurante “chique”, Amanda interpretada pela atriz Dira Paes, ensinando seu novo funcionário a preparar uma mesa para seus clientes, ao fazê-lo Amanda trata de insistentemente mostrar ao jovem garçom que seus clientes, assim como ela, se interessam pelos mínimos detalhes, como a posição dos talheres ou a eficiência discreta de quem os serve. Contudo, a cena muda completamente de configuração quando observamos o passado da personagem, uma criança pobre que trabalhava em uma carvoaria no Mato Grosso, durante a cena o narrador chega a dizer que “inventar outro passado para Amanda não chegaria nem a ser uma mentira”, mostrando que no futuro de Amanda, já como gerente de um restaurante chique, seu passado nem mesmo faria diferença, sua identidade é completamente outra.

Grosfoguel (2009) propõe que trabalhar com uma epistemologia de fronteira, que leve em consideração os saberes de outras realidades que não as eurocêntricas que ditam o sistema-mundo, pode ser a chave para suplantar a colonialidade presente no sistema-mundo atual. McLaren (2000) ressalta principalmente o papel da educação nesse contexto, trabalhar outras perspectivas afirmando representações positivas e as contribuições de todas as raças e etnias, ou como o próprio autor diz nossas atitudes devem ir além da tolerância, para que se possam promover políticas de respeito e afirmação desses grupos subalternizados (MCLAREN, 2000, p.282).

A sociedade brasileira, assim como a representada no filme Cronicamente Inviável, é formada por uma população multicultural, então precisamos lutar para conseguirmos formar indivíduos críticos capazes de expressar e defender a importância da diversidade cultural. Temos que tentar produzir uma realidade original em vez de “reproduzir os desenhos globais eurocêntricos […] que partiram de um centro epistêmico eurocentrado e unilateral” (GROSFOGUEL, 2009, p.144).

Reforço o papel da educação para com a formação de cidadãos críticos que sejam capazes de questionar o status quo social a fim de superar o modelo vigente, ou como dizem Silva Júnior e Sousa,

como professores […], acreditamos que, ao se trabalhar com as relações étnico-raciais no ensino da disciplina é imprescindível abranger as diferentes experiências constituintes do patrimônio histórico-cultural das sociedades sem hierarquizá-las (SILVA JÚNIOR; SOUSA, 2016, p.59).

Devemos então buscar algo como dizem os zapatistas “um mundo em que outros mundos sejam possíveis” e romper com a hegemonia epistêmica exercida pelas classes dominantes desde o colonialismo moderno, para que assim todos os grupos se enxerguem livres para assumir a própria identidade, sem ter de se submeter a um sistema-mundo que não os representa.

 

 

REFERÊNCIAS

GROSFOGUEL, Ramon. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura Sousa; MENEZES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.

HALL, Stuart. A questão multicultural. In: (____). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MCLAREN, Peter. Desconstruir a Condição Branca, Repensar a Democracia: Cidadania Crítica na Gringolândia. In: (____) Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio. (Trad.) Márcia Moraes e Roberto Cataldo Costa. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estud. av., Dez 2005, vol.19, no.55, p.9-31. 2005.

SILVA JÚNIOR, Astrogildo Fernandes; SOUSA, José Josberto. O Ensino de História e a Educação para Relações Étnico-raciais: diálogos com os estudos descoloniais. Revista Grifos, Chapecó, v. 25, n. 41, p. 57-80, 2016.

CRASH NO LIMITE. Direção: Paul Haggis. EUA/Alemanha, Imagens Filmes, 2004. 1 filme (112 min.), son.,col.

CRONICAMENTE INVIÁVEL. Direção: Sergio Bianchi. Brasil, 2000. 1 filme (101 min.), son., col.

* Graduando de Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: weslley.smartins@gmail.com

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