A HISTÓRIA DE IO
Margarete Hülsendeger
Odiarei, se puder, caso contrário amarei, contra a minha vontade.
Ovídio
A Ovídio
Meu nome é Io e sou uma ninfa. Meu pai é Inaco, deus de um dos rios que correm pela terra de Tempe. Sempre fui protegida e amada e não exagero quando digo que sou a filha favorita. Nas florestas onde vivia – muitas delas já não existem mais – encontrava o sustento necessário e, junto com minhas irmãs ninfas, tinha uma existência repleta de felicidade e em completa harmonia. Tudo isso mudou quando, para minha desgraça, chamei a atenção de Zeus.
Sim, esse mesmo. O pai de todos os deuses. O senhor do raio e do trovão. E um libertino infiel. Como todos os outros deuses, não podia ver um rabo de saia sem enlouquecer. E se a mortal, deusa ou ninfa não concordava em sucumbir aos seus desejos, ele não via qualquer problema em violentá-la. Afinal, todas as mulheres, mortais e imortais, deviam dar graças quando ele demonstrava interesse por elas.
Infelizmente, meu caso não fugiu a regra. Primeiro ele tentou me ganhar pelo elogio:
– Ó virgem, digna de Zeus, que farás feliz aquele (quem será?) que receberes em teu leito, vem gozar da sombra das majestosas florestas.
Depois, como meu entusiasmo era nulo, ele começou a listar suas qualidades divinas, acreditando com isso que eu iria me jogar aos seus pés e suplicar por seu amor:
– Se temes entrar sozinha nos antros das feras, é sob a proteção de um deus que penetrarás na solidão dos bosques, e não é um deus qualquer, mas aquele que sustenta com a mão poderosa o cetro celeste e que lança os fulminantes raios.
Não preciso dizer que todo esse “cortejo” me deixou apavorada. Assim, decidi colocar entre nós a maior distância possível. Como fui tola! Meu distanciamento só piorou a situação, pois quanto mais corria, mais ele ficava excitado.
Por fim, aborrecido com a minha resistência, Zeus resolveu dar um basta naquele corre-corre. Usando de seus poderes divinos fez baixar sobre a terra uma nuvem escura e encoberto por ela me violentou. Essa foi a minha primeira grande humilhação. Se ele teve prazer eu não sei; quanto a mim apenas senti vergonha e raiva. Uma imensa e degradante vergonha, misturada com a fulgurante ira de quem se sentiu violada no que tinha de mais precioso, sua honra.
Não pensem, no entanto, que a minha desgraça parou por aí. Estava Zeus a me consolar, prometendo-me todas as benesses do céu, quando de repente emudeceu. Tapando minha boca para que meu choro não fosse ouvido, ficou na escuta de um som que só ele era capaz de perceber. Depois de alguns segundos, sussurrou nervoso:
– Perdão!
E num piscar de olhos fui transformada em uma vaca. Não em um cisne, uma coelhinha ou uma gatinha, mas uma vaca! E só havia uma razão para que esse deus, cheio de orgulho e vaidade, agisse dessa forma: a presença de sua esposa, a deusa Hera.
Hera tinha uma longa experiência em traições e, portanto, sentia o cheiro delas de longe. Sem contar que, para me violar, Zeus não fora nada discreto, pois ao cobrir as terras com nuvens escuras, ele chamou a atenção da esposa. Assim, transformando-me em vaca, Zeus tentou disfarçar mais uma de suas infidelidades. Hera, porém, não era boba e, em seguida, percebeu que o marido tinha aprontado de novo. Para torturá-lo e também para afastar uma hipotética rival do páreo, ela pediu – ou melhor, exigiu – que a vaca (eu!) lhe fosse dada de presente.
Depois de muito insistir, Zeus cedeu e Hera conseguiu a posse da vaca. É óbvio que a intenção da deusa não era a de ficar comigo. Na verdade, por ela eu teria virado churrasco naquele mesmo instante, mas como se tratava de um “presente” do seu “digníssimo” esposo, a rainha dos deuses resolveu me entregar a um de seus servos, um gigante chamado Argos. A partir desse momento, começava, para mim, um novo calvário.
Imaginem a situação absurda: eu transformada em vaca – só conseguindo mugir – sendo dada de presente à esposa daquele que contra o meu desejo tomara não só a minha virgindade, mas também a minha dignidade.
O servo de Hera, Argos, além de ser uma criatura enorme, tinha uma particularidade muito especial: em sua cabeça havia, nada mais nada menos, que cem olhos. Sim, é isso mesmo, cem olhos, todos espalhados naquela horrenda cabeça. Por causa disso, a deusa, o mantinha como guardador de suas pastagens, pois enquanto dois olhos descansavam os outros noventa e oito vigiavam o rebanho. Um horror!
Nunca ele deixava de me observar. Nunca tirava aqueles olhos medonhos de cima de mim. Até mesmo quando consegui ver meu pai e avisá-lo da minha lamentável condição, Argos, sem nenhuma piedade, me levou de arrasto para longe dele, fazendo-se de surdo aos meus mugidos infelizes. Foram dias tenebrosos, posso dizer que comi a grama que o diabo amassou. E meu pai, coitado, sendo um deus menor, nada pôde fazer por mim. Todavia, como não há desgraça que dure para sempre, a minha também estava se aproximando do seu final.
Um dia, quando pastava sob o olhar sempre atento daquele monstro, acercou-se de nós um pastor. Ele trazia algumas cabras e pedindo permissão a Argos levou-as para pastar perto de mim. Corajoso, sentou-se ao lado do gigante e sem constrangimento pôs-se a tocar uma gaita. A música deixou Argos encantado. Apenas mais tarde, vim a saber que aquele homem não era um pastor, mas Hermes, o mensageiro dos deuses e filho de Zeus.
Parece que o “deus dos deuses” sentindo-se culpado, mas temendo desafiar a esposa, resolveu pedir ao filho que, em segredo, viesse me salvar. Como Hermes era conhecido por sua esperteza, ele já chegou às pastagens de Argos com uma estratégia em mente. Seu plano era simples: enganar o gigante e levar-me com ele.
A primeira parte do plano transcorreu sem dificuldades, com Hermes enfeitiçando Argos ao tocar a sua música. O problema, como sempre, era a grande vaidade dos deuses. Quando o gigante, enfim, adormeceu, em vez de ele me buscar e sair correndo, decidiu que precisava de um troféu. Aproximando-se do monstro enquanto dormia, Hermes desembainhou a espada que trazia escondida e, com um único golpe, cortou a cabeça de Argos.
Quando Hera soube da morte de seu servo, ficou enfurecida. Fora de si, ela voltou toda a sua raiva contra quem ela considerava a responsável daquela “terrível tragédia”, a inocente vaca, ou seja, eu. Sem pensar duas vezes ela lançou sobre mim uma das terríveis Fúrias. Desesperada, corri em busca de refúgio. Mas para onde eu iria? A verdade é que eu não tinha para onde fugir e nem mesmo onde me esconder. Assim, cansada de todas as humilhações, acabei caindo de joelhos na margem de um rio, conhecido pelo nome de Nilo. Ali, prostrada, apelei para aquele que havia sido a causa de toda a minha infelicidade, Zeus.
Confesso que ao lançar minha súplica aos céus não estava esperando muita ajuda, a não ser, quem sabe, a morte. Porém, para minha surpresa, senti que meu corpo começava a se transformar. Caíram os pelos, os chifres foram diminuindo até sumirem, os olhos voltaram a se alongar, a boca diminuiu de tamanho, meus braços e mãos reapareceram e no lugar dos cascos vi as minhas unhas. Havia voltado a ser uma ninfa.
De tudo isso, intui o óbvio: Zeus conseguira acalmar a esposa e ela, por sua vez, concordara em cancelar a punição e devolver a minha antiga forma. Quais foram as palavras ou promessas dadas por Zeus a Hera, eu não sei e nem me interessa saber. Naquele instante a única coisa que me importava era estar andando de novo sobre as duas pernas. Assim que pude fugi, indo em busca de meu pai, que infeliz ainda chorava por mim. Quando me viu de volta ao meu corpo de ninfa, sua alegria foi imensa. Para ele, eu retornara dos mortos.
A minha felicidade e alívio também foram imensos, mas o medo e a vergonha eram ainda maiores. Entre outros problemas, temia que no lugar da fala escapasse de minha boca um mugido. Assim, enquanto meu pai comemorava a minha volta, eu permanecia calada. Desde aquele dia tenho ficado o mais distante possível de Zeus e Hera. Eles são para mim o que de pior um deus e uma deusa podem representar.
Meu terapeuta diz que com o tempo e o tratamento certo voltarei a ser uma ninfa normal. Eu tenho as minhas dúvidas. Afinal, traumas como o estupro e ser transformada em uma vaca são difíceis de superar. Além disso, mesmo já tendo passado algum tempo, ainda continuo com alguns hábitos bovinos, como comer grama e mugir quando estou melancólica. As pessoas compreendem a situação e evitam fazer comentários, mas isso não diminui o meu constrangimento.
De qualquer maneira, tenho me esforçado em seguir as orientações médicas. Não quero que o medo ou as dúvidas atrapalhem ou atrasem a minha recuperação. Espero apenas que não demore muito, pois em meus pesadelos ainda vejo os olhos horríveis de Argos a me seguir e vigiar. E quando acordo, de minha boca sempre escapa, em vez de um grito, um mugido longo, triste e cheio de dor.