A HISTÓRIA DE LAURUS NOBILIS
Margarete Hülsendeger
Tudo em nós é mortal, menos os bens do espírito e da inteligência.
Ovídio
A Ovídio
Eu sou uma árvore. Um Laurus Nobilis. Se você não sabe latim, não se preocupe, me chame pelo meu nome mais conhecido, loureiro. Mas já aviso: nem sempre fui assim. Na verdade, eu era uma ninfa. Um espírito da natureza. Meus cabelos eram longos e revoltos, meus lábios vermelhos, pequenos e delicados, meus braços, mãos, pés e ombros, alvos como a neve. Eu era extraordinariamente bela.
Durante muitos séculos percorri os bosques em paz e segurança. Meu alimento eram as frutas, o ar e a água cristalina dos rios e lagos. Nada me faltava, pois tinha tudo ao alcance das minhas mãos. Eu era feliz e não sabia.
Meu pai, no entanto, acreditava que a minha felicidade só seria completa se me tornasse esposa e mãe. Eu, ao contrário, considerava a ideia do casamento um absurdo. Um marido e filhos tirariam a minha liberdade e me transformariam em um ser comum, como são as mulheres mortais. Por isso, um dia joguei-me aos pés de meu pai e implorei que ele me permitisse desfrutar da eterna virgindade, seguindo o exemplo da divina Diana. Ele, relutante, concedeu-me o desejo, mesmo intuindo que a minha beleza seria o maior obstáculo para a concretização dessa vontade.
Para as mulheres mortais deve parecer estranho uma jovem linda e saudável optar pela virgindade, excluindo o casamento e, consequentemente, a maternidade da sua vida. Contudo, você precisa entender: na minha época, quando uma mulher decidia casar-se tudo acabava para ela. Nada mais de passeios solitários pelos bosques. Nada mais de flertes sem compromisso com outros seres mortais ou imortais. Nada mais de banhos em rios ou lagos de águas cristalinas. Era um tédio e um castigo ser uma mulher casada. Logo, quando meu pai permitiu que eu mantivesse minha virgindade fiquei muito contente, pois acreditei ter burlado o Destino.
Imaginem, então, a minha surpresa quando soube que havia sido objeto de uma disputa ridícula entre dois deuses, Apolo e Cupido.
Apolo havia ganho, recentemente, uma batalha contra uma serpente horrível chamada Píton, cravando em seu corpo mil flechas. O Deus do Sol sentiu-se tão orgulhoso que instituiu os jogos Pítios, pois não queria que a sua façanha fosse esquecida por ninguém. Ele era mais um daqueles deuses extremamente zelosos das suas capacidades divinas e, por conseguinte, cheio de vaidade e soberba.
Até aí tudo bem. Apolo orgulhoso com a sua vitória sobre Píton; minhas irmãs felizes por estarem sendo cortejadas por inúmeros admiradores; e eu satisfeitíssima com a minha liberdade. E tudo teria continuado perfeito, se Apolo não tivesse flagrado Cupido com um arco muito semelhante ao seu. Ele ficou tão indignado que resolveu passar uma descompostura no pobre rapaz:
– Que fazes, menino petulante, com arma tão poderosa? – perguntou colérico. – Quem deve trazê-la ao ombro sou eu, que sou capaz de abater uma fera com mão firme, capaz de ferir inimigos e matar a terrível e arrogante serpente Píton.
Apolo chegou ao cúmulo de dizer a Cupido que ele deveria se contentar em seguir apenas as pistas de quaisquer amores, deixando para os Grandes Deuses a tarefa de caçar. Foi uma grosseria totalmente despropositada. Só mesmo alguém vaidoso como Apolo poderia crer que Cupido quisesse usar o arco para sair matando animais peçonhentos. Todos sabiam muito bem quais eram as suas reais aptidões. Portanto, não surpreende que Cupido tenha ficado furioso com semelhante tratamento. Afinal, ele também era um deus, filho de deuses poderosos, e não ia admitir qualquer tipo de desrespeito ou humilhação. E foi, nesse momento, quando estava dominado pela raiva e indignação que ele decidiu jogar sobre Apolo uma praga terrível:
– O teu arco pode atingir tudo, mas o meu também te atingirá. Tanto quanto todos os seres vivos são superados por um deus, a tua glória é inferior à minha.
E dizendo isso ele voou até o alto do Parnaso e da sua aljava retirou duas flechas com setas bem diferentes. Uma tinha a ponta curva e fina e provocava o amor. A outra era obtusa e feita de chumbo e fazia fugir o amor. Com as duas flechas em mãos mirou primeiro em Apolo, atingindo-o, com a seta de ponta curva e fina, direto na medula dos ossos. Depois procurou alguém contra a qual disparar a segunda flecha. E adivinhe quem deu o azar de estar mais perto desses dois durante aquela malfadada briga? A linda ninfa de cabelos revoltos, lábios vermelhos e pele alva. Aquela cujo único sonho era permanecer eternamente livre. Sim, eu, Dafne!
A partir daquele instante, minha vida virou um inferno. Seguindo à risca a maldição lançada por Cupido, enquanto Apolo dizia me amar loucamente, eu não suportava estar nem a meio metro da sua “radiosa” presença. Não havia pedra, árvore, rio que pudesse me esconder, pois sempre tinha atrás de mim um Apolo apaixonadíssimo e muito, muito, chato.
O pior era a sua forma horrível de conquista. Ele me perseguia como se eu fosse um daqueles animais que ele estava acostumado a caçar. Além disso, ele tinha a convicção que apenas a sua “luminosa” personalidade seria estímulo suficiente para me fazer cair de joelhos aos seus pés. Um dia, depois de a perseguição já durar várias horas, ele chegou ao cúmulo de gritar, para quem quisesse ouvir, todos os seus atributos divinos:
– Não sabes, imprudente, de quem foges e por isso foges. Júpiter é meu pai. Graças a mim, desvendam-se o futuro, o passado e o presente. Graças a mim os cantos se unem com as notas da lira.
A vergonha era tanta que meu único desejo era colocar entre nós a maior distância possível. Porém, como meu pai temia, o Destino estava contra mim. Durante essa última e fatídica fuga minhas roupas se rasgaram e eu fiquei praticamente nua. Apolo, ao ver-me, esqueceu o cavalheirismo. Ele não iria mais se contentar com palavras e se tivesse de me violar, não pensaria duas vezes em fazê-lo.
Fiquei com tanto medo que corri como nunca antes havia corrido. Contudo, eu sabia que essa fuga desesperada não duraria muito, pois estava correndo de um deus que há séculos acostumara-se a perseguir e a conquistar as suas presas. Com pavor senti seu hálito em minha nuca e suas mãos roçando as minhas costas. Desesperada, cai de joelhos e lancei uma súplica a meu pai, o Deus dos Rios:
– Socorre-me, pai! Se vós, os rios, tendes um poder divino, muda a minha aparência, culpada de muito agradar!
Não quero, de forma alguma, responsabilizar meu pai pelo que ocorreu depois. Talvez ele estivesse nervoso. Talvez estivesse sob muita pressão. Talvez ele até tenha interpretado ou ouvido mal o meu pedido. Não sei exatamente o que aconteceu. Mas, em nenhum momento imaginei que meu próprio pai me transformaria em uma árvore!
Num piscar de olhos meu peito revestiu-se de uma fina casca, meus cabelos transformaram-se em folhas, os braços em ramos e os pés, que há pouco corriam, em raízes presas ao chão. E o meu rosto? DESAPARECEU!
Apolo, apesar de no início ter sofrido um grande abalo, adaptou-se rapidamente a nova situação. Mesmo não podendo mais me possuir, resolveu usar minhas partes para os seus próprios fins. Meus ramos se tornaram material para suas flechas e minhas folhas passaram a enfeitar eternamente sua “divina” cabeça. Agora Apolo podia me tocar a vontade, mas eu não tinha mais como fugir. Cupido conquistara a sua vingança.
Para concluir essa triste história, deixo claro o seguinte: o mito mente quando afirma que inclinei a copa como se concordasse com a cabeça. Na verdade, eu estava furiosa! Afinal, sem desejar, meti-me em uma briga entre dois deuses vaidosos. Sem querer, tornei-me uma marionete nas mãos de um menino enfurecido e o objeto do desejo de um deus cheio de testosterona. Nunca fui ouvida. Minha vontade jamais foi respeitada. Como poderia concordar com semelhante situação?
Em períodos de profunda tristeza, pergunto-me se tudo não teria sido diferente se eu não tivesse insistido em manter a minha virgindade. O que conquistei com essa tolice? Nada! Ou melhor, ganhei folhas, raízes e um tronco horrível! Além disso, até hoje – e para sempre – sou obrigada a aguentar os risos e deboches de minhas irmãs que, ao contrário de mim, há muito deixaram de ser virgens e fazem questão de demonstrar sua felicidade debaixo dos meus galhos, reclinadas no meu tronco. Deveria ter percebido que existem muitos outros modos de se conquistar a liberdade. Fui precipitada, vaidosa, imatura e agora estou pagando o preço.