Crônicas Em questão

O Império das pessoas simples

Daniel Medeiros*

Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
Divulgação

O confronto de ideias e posições e a busca por ampliação de direitos é parte constituinte da Democracia. Mas nem todos sabemos disso ou concordamos com isso. Aliás, nem todos acham que a Democracia é o pior dos regimes com exceção de todos os outros. Acham ruim, apenas. Vivemos uma possível nova era na qual as pessoas comuns devem dominar as partidas do jogo. Da Democracia aprenderam a parte mais simples: ter maioria. Se tenho maioria, venço. Pronto. Vamos jogar?

É fato que um Estado Democrático de Direito é muito mais complexo, mas pelo jeito não fomos suficientemente didáticos quanto a isso. Afinal, nós mesmos, nos anos oitenta, saímos às ruas para gritar: queremos votar! Porque a maioria nos permitiria criar regras mais justas e para todos. Agora aprendemos que há maiorias e maiorias. Não nos preocupamos suficientemente com isso e alimentamos uma visão ingênua e quase folclórica de povo. Povo seria sempre empático e compassivo. Povo seria sempre progressista e democrático. “O povo, unido, jamais será vencido!”, gritávamos, nos tempos heróicos. Esquecemos que nós é quem poderíamos nos tornar os derrotados.

Por exemplo: é cada vez mais patente que nosso conhecimento sobre as coisas, fruto de muita leitura e pesquisa, muita experiência e debate, não impressiona mais muita gente. Não apenas por não entenderem, mas por desconfiarem do tom que empregamos quando falamos coisas “científicas”. Recentemente, o presidente da República disse que não era médico mas era ousado, como um verdadeiro “cabra da peste”. E foi muito aplaudido. Ousadia é melhor do que conhecimento fundamentado, diziam os aplausos. Parece que nós estamos pagando um preço pelo jeito de dizer (ou de não dizer) as coisas para as pessoas comuns em um mundo de mudanças tão velozes que o que parecia certo ontem já não é hoje.

É só lembrar das informações médicas sobre o mês do pico da pandemia da Covid. Pra quem vive em uma vida de poucas mudanças e também de poucas certezas, como são as pessoas comuns,  essa volatilidade não parece uma coisa muito certa mesmo. E então eles desconfiam. Em outros tempos, eles desconfiavam, mas se calavam porque se sentiam inseguros com sua ignorância. Mas tudo leva a crer que, em algum momento recente, houve uma ruptura na legitimidade intocada dos cientistas e intelectuais e agora vivemos a revolta das pessoas simples, inebriadas com suas vozes e com suas opiniões que se legitimam a si mesmas, com base no “eu vi”, “eu li no whatsapp”, “eu acho que é isso”. Essa mudança ocorreu ao longo de um tempo sem que tivéssemos percebido ou, como é comum, sem que tivéssemos dado bola. Afinal, nossa explicação estava certa e a dessa gente, errada. Como poderíamos perder se temos a razão? Bom, até aqui, estamos perdendo. E feio.

Outro fenômeno que se espalha, ao mesmo tempo, é o da rejeição à luta por ampliação de direitos. Muita gente se sente perdendo alguma coisa quando aumentam as demandas das minorias. E essas demandas estão em todo lugar: escolas, televisão, empregos, partidos, governo. Na própria língua, no comportamento cotidiano, nas piadas, até nos gestos. As pessoas comuns ressentem-se com esse patrulhamento e com a forma como ele é colocado: “é  algo errado”. Mas as pessoas comuns não querem se sentir erradas porque não entendem onde está o erro. Por sua vez, as denúncias das minorias não são suficientemente pedagógicas para superar séculos de exercício de preconceito e discriminação. Esse é um trabalho que poderia dar algum resultado em algumas décadas, se fosse feito com determinação nas escolas desde já. Mas muitos professores –  a maioria, provavelmente – não acham uma prioridade essa discussão toda sobre identidade e liberdade sobre o corpo ou sobre as atitudes. Ao contrário, muitos professores são pessoas comuns com licenciatura. Como sabemos, tornar-se professor não exige um mergulho necessário na cultura e na ciência, principalmente com os cursos “superiores” pífios, risíveis, canhestros que dispomos, na internet ou na esquina dos bairros da cidade. E assim, as pessoas comuns não precisaram submeter à crítica suas convicções e “verdades” para serem autorizadas a ensinar para crianças e jovens a ser tornarem “cidadãos capazes de contribuir para a consolidação do Estado Democrático”. E uma espiral de pessoas comuns vai se elevando e engrossando o coro do “eu vi”, “eu li no whatsapp”, “eu acho que é isso”.

A disputa por direitos, em uma sociedade pobre e desigual como a nossa, gera todo tipo de distorção. Afinal, todo mundo quer mais do que tem, principalmente quando tem pouco e, por isso, acha injusto não ter oportunidades porque outras pessoas têm a pele diferente ou pertence a um gênero diferente do seu. Muita gente nem entende isso direito e fica brava por imaginar que possa, de alguma maneira, estar sendo lesado. Tem gente que trabalha de sol a sol, acumula coisas com muito sacrifício e agora ouve que é privilegiado, da classe dominante, opressor. Para as pessoas comuns, isso é algo difícil de entender. Para eles, é fácil entender que para ter algo, tem de trabalhar. A sociedade se divide entre os vagabundos e os que têm carteira assinada. E trabalhar é pra sustentar a família. E pagar imposto é pra sustentar ladrão e vagabundo, os políticos. E quem fica reclamando que quer direitos é gente incapaz. E quando o presidente afirma em seus discursos que somos um país cristão e conservador, essas pessoas concordam, sentindo-se reconfortadas com essa lembrança. Não importa que sejam também exploradas. Importa que agora, lá no poder, tem alguém que é como elas: sem frescura, sem cultura, sem mimimis. Elas se sentem autorizadas e empoderadas para saírem às ruas e defender o seu tipo de país ideal: aquele no qual seus valores sejam a regra, como sempre foi. E as exceções sejam tratadas como exceções. Como na gramática. Qualquer coisa fora disso é incomum. E o incomum deve ser tratado, deve ser contido. O homem comum não quer que mexam na sua vida. Essa coisa de “botar água no feijão” não serve para estranhos, mas para a família e para os amigos. Somos um povo de conveniências. Solidariedade só na catástrofe. No dia a dia, eles, os fracos, que lutem.

Vivemos a perplexidade dessa realidade. Nós, que sonhamos com um país justo, democrático, mais igual, solidário, observamos, perplexos, o reflexo de nossos erros, de nossa negligência, de nossa incapacidade, de nossa miopia. Olhamos o país como quem descobre o retrato de Dorian Gray.

* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@gmail.com

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