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A FELICIDADE DE NÃO SABER

A FELICIDADE DE NÃO SABER

Margarete Hülsendeger

O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta!

Katherine Masfield

Em tempos de pandemia é difícil falar em felicidade, principalmente quando estamos mergulhados em tantas tensões, desde as sanitárias, políticas e econômicas até as religiosas. Por isso a literatura é importante em momentos como este, pois ela consegue nos transportar para épocas, lugares e paisagens onde podemos ser livres e felizes sem nos sentirmos culpados. Não precisa nem mesmo ser um livro com mais de 200 páginas para experimentarmos essas sensações, basta esbarrarmos em uma história curta bem escrita para sermos conduzidos a estados de satisfação que, muitas vezes, não encontramos no mundo real. Um exemplo desse tipo de literatura é o conto Bliss (em português Felicidade) da autora neozelandesa, Katherine Masfield (1888-1923).

Se passarmos os olhos pela breve biografia de Masfield que a Wikipédia nos oferece vamos observar que a escritora teve poucos motivos na vida para ser feliz. Apesar de ter nascido em uma típica família colonial britânica, ela teve uma infância solitária e alienada. Na Londres, do início do século XX, casou-se e separou-se em um período de apenas três semanas. Por volta dessa mesma época engravidou de um amigo da família, mas acabou perdendo a criança com poucos meses de gestação. A morte de um irmão na Primeira Guerra Mundial e o fato de seus trabalhos raramente serem publicados a lançaria em uma depressão profunda. Esse rosário de infelicidades culminaria com sua morte prematura (34 anos) em virtude de ter contraído tuberculose, doença que a fez percorrer a Europa em busca de tratamentos, alguns bem radicais, que apenas pioraram o seu estado. Estranhamente, no entanto, foi durante o seu périplo europeu, em busca de uma cura milagrosa, que ela começou a escrever os trabalhos pelos quais se tornaria, finalmente, conhecida. Um desses trabalhos foi a coleção de contos Bliss, publicada em 1920, na qual o conto título receberia o tão desejado reconhecimento.

Nessa história a personagem principal e narradora chama-se Bertha Young, uma típica mulher burguesa da primeira metade do século XX. O conto começa com Bertha experimentando uma epifania, ou uma espécie de êxtase, que a faz lutar contra o desejo de “correr em vez de andar; deslizar pelo assoalho reluzente de sua casa, marcando passos de dança; rodar um aro; jogar alguma coisa para cima para voltar a pegá-la ou ficar quieta e rir… simplesmente por nada”. A felicidade de Bertha é tão contagiante que o leitor é levado a sentir e até mesmo invejar essa euforia. Contudo, conforme a leitura prossegue, percebe-se que esse contentamento é um sonho meio delirante de uma mulher que, apesar dos seus trinta anos, não só é imatura, mas completamente despreparada para vida.

Em Bliss, como não há ação, a história está centrada na passividade da protagonista, de tal forma que, tudo transcorre apenas na sua mente. A intensidade dos pensamentos de Bertha domina quase toda a narrativa: desde a chegada em casa com sua felicidade recém-descoberta, passando pelo desejo de cuidar da filha pequena e assim sendo capaz de enfrentar a babá autoritária, até o momento que embevecida Bertha se vê diante da pereira que existe em seu jardim. Somente quando observa dois gatos – um branco e outro cinza – circularem entre os ramos da árvore é que ela

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

se permite sentir um pouco de medo e insegurança. Apenas nesse breve instante o leitor desconfia que toda essa felicidade pode ser só uma ilusão. Desse modo, Katherine Masfield vai construindo a personalidade e a vida de Bertha Young, em alguns momentos nos fazendo acreditar que essa felicidade (beirando a histeria) é possível e em outros alertando-nos (muito sutilmente) que tudo pode ser apenas um delírio e, portanto, uma perigosa armadilha emocional.

Bertha Young não consegue racionalizar seus sentimentos e por conta disso, mergulha de cabeça em uma vida de fantasia. Na verdade, se formos além do texto, veremos que Katherine Masfield nada mais faz do que uma crítica mordaz a sociedade de sua época e, consequentemente, ao papel da mulher dentro dessa mesma sociedade. Afinal, se não é permitido à mulher traçar seus próprios caminhos, acaba-lhe restando apenas o sonho de uma vida perfeita. Como resultado, todos os cenários do conto refletem o ambiente da classe média pós-vitoriana da segunda década do século XX: o marido indulgente, a casa bem arrumada, o jantar delicioso e até mesmo os amigos pseudointelectuais. Pode-se dizer que a única nota dissonante na história é a presença de outra personagem feminina, a senhorita Perla Fulton; uma mulher misteriosa que Bertha conheceu no clube. Segundo as palavras da própria Bertha, “Até certo ponto, achava a senhorita Fulton extraordinariamente franca; mas havia nela essa linha divisória impossível de transpor”. Era o superficial tentando compreender o profundo e, ao não conseguir, conformando-se em aceitar e até mesmo admirar o que é desconhecido.

Alguns críticos acreditam que toda a obra (não só esse conto) é um espelho da vida da autora. Ela também viveu essa vida de mentira, onde tudo é cor de rosa e a posição das almofadas no sofá é de vital importância para o destino do universo. Todavia, assim como Bertha Young, Katherine Masfield também descobriu que em meio a felicidade mais absurda existem gatos estranhos e mulheres misteriosas capazes de destruir facilmente qualquer fantasia que possamos criar. A vida e as pessoas são frágeis, assim como a pereira no jardim de Bertha Young.

Para os leitores que gostam de finais conclusivos, preciso avisar que em Bliss isso não vai acontecer, esse não é o estilo da escritora neozelandesa. À maneira do escritor russo Anton Tchekov (1860-1904), Masfield não acreditava em finais fechados, ela preferia histórias que permanecessem abertas, ecoando na mente do leitor, sugerindo novas leituras e interpretações. Bliss é a história perfeita para quem não quer se envolver com narrativas longas, pois, além de estar muito bem escrita, aborda questões que nunca saem de moda, fazendo da literatura esse espaço fora tempo onde podemos nos perder, esquecendo, nem que seja por alguns minutos, as tensões e preocupações que nos consomem. Portanto, dê uma chance a Bliss e crie o seu próprio final.

 

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