QUANDO UM TEMA FAZ PARTE DO TECIDO DA VIDA
Margarete Hülsendeger
Quando o silêncio se instala dentro de uma casa, é muito difícil fazê-lo sair; quanto mais importante é uma coisa, mais parece que queremos silenciá-la.
Marguerite Yourcenar
Em tempos de Instagran, Facebook, WhatsApp e Twitter escrever tornou-se em uma verdadeira aventura. Imagine, então, escrever uma carta. Essa, com certeza, é uma arte quase em extinção. No entanto, há muitos escritores que utilizaram e ainda utilizam o estilo epistolar como recurso estilístico, não só na escrita de romances, mas também na escrita de ensaios. Entre os muitos exemplos podemos citar Rainer Maria Rilke (considerado o pai desse estilo literário), Mario Vargas Llosa, Ernesto Sabato, Paul Auster, J. M. Coetzee, entre outros. Portanto, não foi nenhuma surpresa encontrar uma escritora que fez de uma carta um livro. Estou me referindo a belga Marguerite Yourcenar (1903-1987) e seu Alexis ou O Tratado do Vão Combate[1].
Apesar de Alexis (1929) ter sido seu primeiro livro, Yourcenar só ficaria internacionalmente conhecida, em 1951, quando publicou Memórias de Adriano[2], um romance histórico sobre o imperador romano Públio Élio Adriano. Nessa obra, a autora traça um perfil, não só do estadista, mas também do homem que governou, durante 21 anos, o Ocidente. Trata-se de um livro forte, repleto de frases belíssimas e parágrafos lindamente construídos, transformando o que poderia ser uma simples biografia romanceada em uma obra literária de qualidade impecável. A última frase do livro é inesquecível, “Ainda um instante olhemos juntos os traços familiares dos objetos que sem dúvida não voltaremos a ver. Tratemos de entrar na morte com os olhos abertos”.
Em seu livro de estreia, 22 anos antes, o homenageado de Yourcenar não foi um soberano do mundo antigo, mas um escritor pelo qual ela tinha grande admiração, o francês André Gide (1869-1951), fundador da Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française. Gide, na contramão de sua época, nunca fez segredo de sua homossexualidade, falando abertamente a favor dos direitos dos homossexuais, ele, inclusive, escreveu um livro – Corydon (1924) – no qual combateu os preconceitos homofóbicos da sociedade de seu tempo. Desse modo, apesar de Yourcenar dizer que a influência de Gide sobre a obra fora pequena, ela criou um personagem, Alexis, que, após anos de repressão, decide escrever uma carta à sua esposa, Mônica, confessando as razões do porquê não pôde amá-la como ela merecia.
Como se trata de um tema delicado, principalmente se considerarmos o ano da sua publicação, a autora constrói a história consciente que mesmo que o assunto tenha sido tratado de forma abundante pela literatura, muitas vezes, de forma abusiva, o problema de Alexis continuava sendo angustiante e bastante atual. Daí o cuidado com a forma de expressar-se, pois para a autora, as tendências e as ações de uma geração para outra, variam pouco, o que realmente muda é “a zona de silêncio ou a espessura das capas de mentira”.
E é exatamente isso o que Alexis confessa em sua carta, a mentira que tem sido a sua vida, incluindo o casamento com Mônica. Marguerite justifica-se – em apresentação escrita em 1963, para uma nova edição do livro – que escolheu escrever do ponto de vista masculino porque se tivesse escrito usando a voz de Mônica seria bem mais difícil, pois, para ela, não há nada mais secreto do que a existência feminina. Logo, para abordar uma matéria polêmica, como a questão do desejo sexual, ela precisou, antes de tudo, encontrar o tom correto para a voz de Alexis. Uma voz que, conforme a autora, devia manter as inflexões educadas que parecem de outra época, assim como as palavras de afeto capazes de dizer mais sobre a relação do casal do que as suas próprias confidências.
Assim, no decorrer da leitura vamos descobrindo a história desse homem, desde a infância, sempre cercado por mulheres (mãe, irmãs e tias) até o casamento com Mônica, passando por sua primeira experiência sexual e o seu sentimento de ser um estranho entre seus iguais. É como diz Alexis, “A primeira consequência das inclinações proibidas é nos fecharmos dentro de nós mesmos: tem-se de calar ou só falar com os nossos cúmplices”. Essa carta-livro é, portanto, um triste testemunho de quem foi forçado a conviver com uma mentira para contentar a família e a sociedade da qual fazia parte.
Em Alexis a excelência da escrita é a mesma que encontramos em Memórias de Adriano, com a diferença que a autora parece estar falando de alguém próximo a nós e do qual, apesar das aparências, sabemos muito pouco. A dor é palpável e a angústia vivida pelo personagem-título torna-se a nossa angústia. Quando ocorre o casamento com Mônica nem por um segundo conseguimos acreditar que essa história possa ter um final feliz. E Yourcenar não nos decepciona. Na verdade, o fim é surpreendente.
Após várias páginas explicando-se, rememorando o seu passado, sem nunca dizer claramente o que o atormenta, Alexis opta por revelar-se e nessa revelação ele encontra a liberdade tão desejada. Mônica a todas essas é apenas aquela para a qual a carta está sendo escrita. Sobre ela nada é revelado, seus pensamentos e sentimentos ficam escondidos do leitor. Contudo, não se preocupem, apesar do silêncio de Mônica, Yourcenar não consegue impedir que em alguns momentos a voz feminina, mesmo que de forma sutil, seja ouvida.
Alexis ou o Tratado do Vão Combate é exatamente isso: uma batalha que durou quase uma vida. Um combate que desde o início esteve fadado ao fracasso. Ninguém, por mais que se esforce, consegue esconder-se para sempre. Em algum momento, tudo vem à tona. E foi o que ocorreu com Alexis. Ele escolheu viver segundo a sua moral, acreditando que Monica seria capaz de compreender, “o que é mais difícil que perdoar”. E assim como em Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar encerra o livro com uma frase que, por sua força, permanece depois do livro fechado, ressoando na mente do leitor. É o último argumento de um homem atormentado, mas desejoso de ser compreendido e aceito: “Havia contraído contigo compromissos imprudentes e a vida se encarregou de protestar: peço-te perdão, o mais humildemente possível, não por te abandonar, mas por ter ficado tanto tempo”. Alexis é um daqueles livros atemporais, pois, independente do momento que se esteja vivendo, obrigam o leitor a parar e refletir antes de seguir em frente. Leia e comprove você mesmo!
[1] Yourcenar, Marguerite. Alexis ou o Tratado do Vão Combate. Tradução Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[2] Yourcenar, Marguerite. Memórias de Adriano. Tradução Martha Calderaro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
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