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O “MÉTODO” BERNHARD

O “MÉTODO” BERNHARD

Margarete Hülsendeger

Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta com um golpe de punho sobre o crânio, qual é a vantagem de ler?

Franz Kafka

A imagem kafkiniana do “golpe de punho sobre o crânio” chamou minha atenção desde a primeira vez que esbarrei nela, pois me fez pensar em todos os livros que, de alguma maneira, haviam deixado sua marca em mim. Embora nem sempre tenha apreciado as sensações provocadas por essas leituras, não posso negar que eles tiveram o mérito de me fazer refletir sobre temas que estavam fora da minha zona de conforto. O naufrago (1983)[1], do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), é um exemplo desse tipo de livro, uma obra capaz de causar um tremendo impacto, não só no crânio, mas na alma do leitor.

Bernhard é considerado um dos mais importantes escritores germanófonos da segunda metade do século XX, tendo deixado uma obra considerável que inclui dezenove romances, dezessete peças de teatro entre outros livros breves e autobiográficos. Considerado um autor polêmico, mantinha uma relação de amor e ódio com a Áustria a ponto de no seu testamento proibir a encenação de suas obras teatrais em solo austríaco. Até mesmo após a sua morte, suas produções provocaram muito controvérsia, especialmente Heldenplatz (Praça dos Heróis), de 1988, na qual Bernhard denuncia o ressentimento antissemita ainda latente na Áustria pós-guerra.

O náufrago, livro mais conhecido do autor no Brasil, é a primeira parte de uma trilogia cujo foco são as artes: música, teatro e pintura, respectivamente. Assim, nesse primeiro livro o personagem central é um pianista, Wertheimer, ressentido com a genialidade de outro músico, Glenn Gould, o único capaz de tocar as variações Goldberg[2]. Nele também iremos encontrar todos os temas recorrentes na obra de Bernhard: suicídio, arte, ideologia nacional-socialista, fracasso, tudo montado sobre um discurso severo e mordaz. Daí a necessidade de respirarmos fundo quando iniciamos a sua leitura, pois, com certeza, esbarraremos em ideias e imagens que vão nos causar algum tipo de desconforto. No entanto, trata-se de um “desconforto bom” já que nos obriga a refletir sobre questões que, normalmente, procuramos não enfrentar.

No início da leitura, por exemplo, nos deparamos com a seguinte frase: “Quando passamos dos cinquenta, nós nos vemos como pessoas vis, sem caráter; a questão é quanto tempo suportamos essa situação. Muitos se matam aos cinquenta e um” (p. 32, grifo meu). Essa sentença é a marca do que o próprio autor chamou de “método Bernhard”, ou seja, a presença de uma crítica tão contundente que, muitas vezes, pode parecer um misto de soberba e desprezo diante da vida e dos problemas do homem comum.

Confesso que ao ler o trecho antes citado minha primeira reação foi de contrariedade e até de repulsa. No entanto, essas emoções não duraram. Em seguida compreendi (ou pelo menos acredito ter compreendido) que o autor apenas colocou em palavras (duras, não posso negar) o sentimento de muitas pessoas (incluindo eu) quando o tema é a passagem do tempo.

A verdade é que até os 50 anos o universo parece estar sempre cheio de possibilidades e desafios. Depois dos 50 – salvo algum episódio transformador – percebemos que as tais possibilidades se reduziram e começamos a acreditar que, a partir de então, estamos vivendo um tempo emprestado. Há um sentimento inconfesso de que uma fronteira importante foi ultrapassada. A juventude ficou para trás e adentrou-se em um território desconhecido chamado por alguns de maturidade e por outros de velhice. E a partir desse ponto fica impossível não pensar na própria morte. E convenhamos, essa é uma daquelas ideias difíceis de digerir. E quando esse pensamento se torna uma obsessão, o suicídio é apenas mais uma escolha a ser feita.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

Algumas páginas adiante o autor escreve: “Na teoria, nós entendemos as pessoas, mas na prática não as suportamos; na maioria das vezes nos relacionamos com elas apenas a contragosto e as tratamos sempre do nosso ponto de vista” (p. 110). Quem quer ouvir (ou ler) que não suporta (e, portanto, não é suportado) ninguém, nem mesmo o melhor amigo, o marido ou a esposa, o filho, a filha, a mãe ou o pai? Isso vai na contramão de tudo o que nos ensinaram. Entretanto, aqui também é preciso se distanciar, tentando entender o que o autor quer nos dizer. Se conseguimos, logo compreendemos que por detrás da acidez dessas palavras há uma verdade evidente.

Na maior parte do tempo, desejamos moldar os outros à nossa imagem e semelhança. Não aceitamos com facilidade quando divergem de nós e se aceitamos o fazemos a contragosto, porque no fundo queremos que os nossos pontos de vista sempre prevaleçam. Apesar disso, não suportamos a solidão, aspiramos sempre a proximidade do outro, mesmo que seja apenas para brigar e discutir. Talvez seja como diz Bernhard, em uma nova amostra do seu “método”: “… muitos são felizes porque estão atolados na infelicidade” (p. 87).

Ao longo das 140 páginas de O náufrago seremos atingidos por sucessivos e potentes golpes. Todos eles socando alguma parte importante e, especialmente, sensível da nossa mente e alma. É impossível permanecer indiferente ao texto: odiamos ou amamos, não há meio termo. Eu posso dizer que passei pelos dois extremos. Odiei porque fui obrigada a encarar as várias partes sombrias que existem dentro de mim; mas, em seguida, reconheci as qualidades de um texto que, literalmente, morde, espicaça e nos golpeia repetidas vezes.

É claro que tudo que escrevi é a minha interpretação da obra. O autor – como tantas vezes acontece – pode não ter pensado em nada disso. De qualquer maneira, essa, na minha opinião, não é uma leitura de final de semana ou de férias. Não é nem mesmo uma leitura para fim de noite, a não ser que você queira ficar sem dormir. É uma leitura que exige enorme capacidade de concentração e análise. E isso significa dispor de tempo para absorver os golpes que o nosso crânio, com certeza, receberá. Se você não tem medo de enfrentar esse desafio, essa é uma leitura que eu recomendo!

[1] BERNHARD, Thomas. O náufrago. Tradução Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

[2] Conjunto de variações para cravo compostas por Johann Sebastian Bach.

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