NA MENTE DE ORWELL
Margarete Hülsendeger
Uma situação trágica existe precisamente quando a virtude não triunfa, mas quando ainda se sente que o homem é mais nobre do que as forças que o destroem.
George Orwell
Em 2018 a revista Galileu publicou um artigo cujo título era: “8 fatos sobre George Orwell, o autor de A revolução dos bichos e 1984”[1]. Na matéria aparecem algumas curiosidades sobre o autor inglês como ter lutado na Guerra Civil espanhola e de uma gaúcha, Mabel Lilian Sinclair Fierz, filha de um casal inglês que se mudara para a Inglaterra aos 17 anos, ter convencido o editor Leonard Moore a publicar em 1933 o primeiro livro do escritor, Na Pior em Paris e Londres. De qualquer forma, curiosidades a parte o fato é que Orwell foi, sem dúvida nenhuma, um escritor cuja obra esteve marcada por uma consciência profunda das injustiças sociais, uma intensa oposição ao totalitarismo e uma paixão pela clareza da escrita. Essas qualidades podem ser encontradas tanto nos romances como nos ensaios.
Há algum tempo adquiri um livro de Orwell em um “saldão”. Ele estava em meio a outros livros, todos aparentemente encalhados e sendo vendidos pela metade do preço ou até menos. Quando o folheei pude constatar que se tratava de um conjunto de textos selecionados a partir de coletâneas diversas de seus artigos e ensaios. No Brasil o título adotado foi o de um de seus ensaios, Dentro da Baleia (2005)[2]. Durante algum tempo o livro permaneceu na estante sem ser tocado, mas agora, por conta da pandemia e do isolamento social, tive a oportunidade de finalmente lê-lo. E fico feliz em dizer que foi uma leitura maravilhosa!
Logo no primeiro texto – “Por que escrevo”, de 1946 – a identificação. De forma simples, Orwell explica suas motivações para escrever. Ele conta, por exemplo, nunca ter pensado, quando estava diante da folha em branco, “Vou produzir uma obra de arte”. Ao contrário. Seu desejo sempre foi o de expor uma mentira, um fato para o qual queria chamar a atenção e, é claro, a vontade de atingir um público. Além disso, diz que escrever não era uma tarefa fácil. Segundo ele, tratava-se de “uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa” (p. 30).
Quem se dedica à escrita, por prazer ou profissão, reconhece nessa frase uma verdade. O ato de escrever está cheio de sentimentos conflitantes. Contudo, segue-se em frente – como se fosse “impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender” (p. 30). Palavra após palavra, frase após frase, o escritor resiste às ondas de ansiedade que caem sobre ele, travando uma luta não só horrível e exaustiva, mas também solitária, e da qual a única testemunha é a folha de papel ou, em tempos modernos, a tela do computador.
Mais adiante há outro texto cuja leitura vale a pena. Chama-se, “Bons livros ruins”, de 1945. Dessa vez Orwell se dirige ao leitor e aos críticos literários, defendendo a existência do que ele denominou de “boa literatura ruim”, ou seja, livros que entretém, emocionam, mas que o intelecto se recusa a levar a sério.
Segundo Orwell, quando se trata de algo tão subjetivo como gostar ou não gostar de um livro, não se deve ser preconceituoso ou sectário em excesso, pois “arte não é a mesma coisa que celebração” (p. 47). Como Orwell, acredito que todos os autores devem ter seu espaço garantido – assim como o leitor – sem julgamentos extremados ou narizes torcidos. É como ele escreveu: “Tudo o que podemos dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que precisemos de distração de vez em quando, a literatura ‘leve’ tem lugar reservado” (p. 48). E o que era válido em 1945 continua sendo em 2020, 2021…
A primeira parte do livro – “Palavras, Palavras” – da qual esses dois textos são uma amostra, expõe o interesse de Orwell para como a literatura repercute na vida, não só do escritor, mas também do leitor. Já na segunda parte – “A Memória da Política” – ele se concentra em temas diversos todos embasados em sua experiência pessoal. Aqui o ensaio que mais chamou a minha atenção intitula-se “Como morrem os pobres”, escrito em 1946.
Esse texto é de uma atualidade que assusta, pois narra a experiência de Orwell em um hospital público de Paris quando esteve internado por conta de uma pneumonia. A indiferença e o desrespeito para com os doentes lembram o que todos os dias lemos e vemos nos jornais e TV, em pleno século XXI. O tom do texto é amargo e sombrio. Orwell chega a dizer que entende os motivos do pavor que muitos pobres sentem dos hospitais, pois o “Hospital X” o fazia lembrar-se dos “hospitais malcheirosos e cheios de sofrimento do século XIX” (p. 93).
Não tenho como avaliar o quanto dessas impressões são verdadeiras, mas posso dizer: hoje, muitos pobres (mais do que seria aceitável) ainda experimentam esses mesmos sentimentos de descaso e falta de respeito. Meses para realizar um exame que pode ser a diferença entre a vida e a morte, emergências lotadas, com doentes se acumulando nos corredores em camas improvisadas e, na falta delas, cadeiras duras e desconfortáveis. Se Orwell exagerou, repito: eu não sei. No entanto, esse ensaio é um relato de uma realidade que, infelizmente, apesar dos avanços tecnológicos e médicos, ainda persiste entre nós.
E assim poderia continuar escrevendo sobre todos os outros ensaios desse livro, constituído de três partes – a última chama-se “A política da Literatura” – , que descreve não só as coisas do mundo, mas também as ideias e as convicções do autor. Fiquei tão impressionada com o livro que me senti impelida a fazer uma breve pesquisa sobre o homem chamado Eric Arthur Blair, nome verdadeiro de George Orwell (1903-1950). E o que descobri explica muitas de suas posições, não só literárias, mas também políticas.
Filho de ingleses, nasceu na Índia e foi integrante da Policia Imperial Inglesa da Birmânia, atual Mianmar. Em Londres, tornou-se um vagabundo e, em Paris, um boêmio. Lutou na guerra civil espanhola, onde se feriu no pescoço. Morreu aos 46 anos, de tuberculose, sendo enterrado na All Saints’ Churchyard, Sutton Courtenay, Oxfordshire, com o simples epitáfio: “Aqui jaz Eric Arthur Blair, nascido em 25 de Junho de 1903, falecido em 21 de Janeiro de 1950”.
Muitas de suas experiências de vida estão retratadas em seus romances, ensaios e matérias para jornais e alguns desses “retratos” encontram-se no livro Dentro da Baleia. Os três textos que comentei são apenas uma pequena amostra, poderia ter falado também sobre o ensaio que dá nome ao livro ou sobre “Reflexões sobre Gandhi”, um texto polêmico, escrito em 1948, no qual Orwell entre tantas frases fortes escreveu, “Santos devem ser considerados culpados até que se prove sua inocência” (p. 70). Enfim, fica a sugestão para quem deseja ler um “bom livro ótimo”. E se você não concordar com alguns dos posicionamentos do autor, faço minhas as suas palavras quando analisando as “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift, declara: “… o gosto pode dominar a desaprovação, ainda que se reconheça com clareza estar gostando de algo hostil” (p. 216). Boa leitura!
[1] Disponível: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/06/8-fatos-sobre-george-orwell-autor-de-revolucao-dos-bichos-e-1984.html. Acesso: 31 jul 2020.
[2] ORWELL, George. Dentro da baleia e outros ensaios. Organização e prefácio Daniel Piza. Tradução José Antonio Arantes. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
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