*Daniel Medeiros
O geógrafo baiano Milton Santos dizia que “ser negro no Brasil é frequentemente ser objeto de um olhar vesgo e ambíguo”. De fato. De “mãos e pés do senhor de engenho”, como afirmava, no século XVIII, o cronista Antonil, para o “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve”…, do presidente bolsonaro, há uma diferença brutal de percepção do papel dos negros na formação do nosso país. Mas essa mudança não foi por acaso. Tão logo a escravidão acabou – e ainda antes, quando já se sabia que acabaria – os senhores brancos das terras e rendas trataram de se livrar da memória da existência desse tempo no qual seus faustos e quitutes eram produzidos e embalados por mãos negras. Por isso, tanto o governo central como os governos das províncias, financiaram a vinda de imigrantes europeus.
Não se tratava apenas de substituir a mão de obra de origem africana, mas de iniciar um processo de esquecimento da sua presença como motor da economia nacional. Reduzidos a poucos, espalhados pelas margens, sem trabalho e sem instrução, quem seria capaz de crer que foram eles que sustentaram, por trezentos anos, o país? Como lembra o sociólogo Florestan Fernandes, “o negro permaneceu sempre condenado a um mundo que não se organizou para tratá-lo como ser humano e como “igual”. Primeiro, pela exploração brutal; depois, pelo abandono sem escrúpulos. Por fim, pela negação da memória, pelo esquecimento programado.
Em 1895, o pintor espanhol Modesto Broco, radicado no Brasil há mais de quarenta anos, pinta “a Redenção de Cam”, que mostra uma senhora negra com as mãos em louvor aos céus, enquanto, ao lado, a filha morena segura nos braços o neto branco, enquanto o imigrante olha, admirado, as pernas cruzadas em gostosa indolência, a cena que se passa em frente da casa de pau a pique. Em 1911, o médico e diretor do Museu Nacional, João Batista de Lacerda, levou uma reprodução do quadro para o Congresso Universal das raças, realizado em Londres, para ilustrar o “sucesso” da estratégia do governo brasileiro em transformar o preto em branco em “apenas” três gerações.
Esse esquecimento programado do papel do negro para a existência do Brasil já estava presente na letra do hino da República – e se não fosse a decisão autoritária de Deodoro, teria sido o novo hino nacional, pois ganhou um concurso para esse fim. Na sua letra, cujo estribilho diz “Liberdade, liberdade/ abre as asas sobre nós”, também afirma: “Nós nem cremos que escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre País. Detalhe: o hino foi oficializado como o hino da proclamação da República e publicado no Diário Oficial em 21 de janeiro de 1890, menos de dois anos após o fim da escravidão.
A República forjou seus heróis e um deles, sem dúvida, foi o baiano Rui Barbosa, considerado a voz da moralidade e da modernidade que se acreditava que o novo regime traria. Ele foi Ministro da Fazenda do primeiro governo republicano e foi ele quem, em 13 de maio de 1891, no aniversário de três anos do fim da escravidão, mandou queimar os arquivos que continham os registros sobre a propriedade dos escravos, com a seguinte justificativa: “Considerando que a Nação brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolução histórica, eliminou do solo da pátria a escravidão, instituição funestíssima que, por tantos anos, paralisou o desenvolvimento da sociedade e infeccionou-lhe a atmosfera moral”. Pouco antes, em dezembro de 1890, o Congresso Nacional aprovava a medida, com a seguinte nota: “O Congresso Nacional felicita o Governo Provisório por ter ordenado a eliminação nos arquivos nacionais dos vestígios da escravatura no Brasil.”
Com a queima dos arquivos, mais um passo era dado para apagar a memória do papel fundamental dos negros na construção da economia pujante e do Estado que tinha jurisdição por território continental e que agora buscava se reinventar em bases “mais modernas e civilizadas”. O próprio Rui Barbosa dá uma lição de como as elites queriam se ver dali em diante. Em um episódio famoso, ocorrido em outubro de 1910, na sede da República, o Palácio do Catete, no governo Hermes da Fonseca, o nobre tribuno resume o tipo de país que muitos queriam ver e o tipo de país que muitos queriam deixar de ver – e que é o país onde se encontra a maioria dos negros.
O presidente Hermes e sua jovem esposa, a caricaturista Nair Tefé, receberam para uma festa no palácio uma série de convidados ilustres, da “alta roda”, como já se costumou dizer em outros tempos e, para entretê-los, contrataram um violonista para tocar aos convivas o sucesso popular da época, o maxixe “corta-jaca”, de autoria de Chiquinha Gonzaga, com melodia dançante, malemolente, e letra levemente picante, pode-se dizer. Foi recebida por calorosos aplausos. Mas enfureceu os críticos dessas concessões ao vulgar, a mostrar a cena das ruas dentro dos salões civilizados. Inconcebível, muitos disseram, em críticas contundentes ao casal que, diante delas, não mais realizou encontros festivos no palácio.
O maior crítico foi o paladino Rui Barbosa. Em um pronunciamento no Senado, em 11 de novembro de 1910, disse o vetusto erudito: “Mas o ‘corta-jaca’ de que ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais, o ‘corta-jaca’ é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se volte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!
Abdias Nascimento já afirmava, em seu livro “Genocídio do Negro Brasileiro”, que há uma estratégia voltada para esse cancelamento da memória do papel dos negros na construção desse país, “[…] institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de governo, assim como difuso e profundamente penetrante no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país, da classificação grosseira dos negros como selvagens inferiores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicação da “mancha negra” (NASCIMENTO, 2016[1977] p.111).
Vivemos hoje em meio a uma pandemia na qual pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%), segundo dados de pesquisa da PUC-RJ. Isso tudo com a negligência assumida e sem vergonha das autoridades federais. É a redenção de Cam, na sua versão mais diabólica.
Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor de História no Curso Positivo.
danielmedeiros.articulista@