DIFERENTES MANEIRAS DE COMPREENDER
Margarete Hülsendeger
Eu penso que sobre nossa pele, não sobre nosso horizonte terreno, mas até mesmo sobre o universo, batem as ondas metafísicas que têm o nome de infinito, de eterno. São forças, últimas fronteiras, que para nós serão sempre intransponíveis.
Cardeal Gianfranco Ravasi[1]
É difícil falar em espiritualidade sem que as pessoas a confundam com religião, pois, para muitos, ela está irremediavelmente ligada a seguir ou não um culto religioso. Esse tema, portanto, levanta um debate que pode ser resumido na pergunta: será que é preciso estar vinculado a uma religião para vivenciar a espiritualidade?
Como em todas as questões polêmicas, encontraremos defensores para os dois posicionamentos. Haverá aqueles que argumentarão que os códigos estabelecidos pelas diferentes religiões são os norteadores das condutas éticas e morais da humanidade e que sem eles, a essa altura, a sociedade já teria caído no caos e na total desordem social. Por outro lado, outros poderão defender que o ser humano é acima de tudo um ser espiritual, independentemente de códigos, normas ou regras estabelecidas por outros homens também falíveis e, por consequência, sujeitos a erros e equívocos. Em todo caso, não importa qual a posição escolhida, esse tipo de debate abre espaço para refletirmos sobre como o homem pode cultivar valores que vão além da ideia da existência de uma verdade absoluta imposta por qualquer grupo social, religioso ou não.
O primeiro passo para uma reflexão produtiva talvez seja deixarmos de lado preconceitos e pensarmos na probabilidade de o homem não ser apenas um agrupamento de átomos e moléculas, mas “algo mais” que precisa ser melhor entendido e analisado. Nesse sentido, o físico teórico e escritor Amit Goswami defende que enquanto o corpo físico “representa possibilidades que sempre precisam se manifestar como uma estrutura localizada, com início finito e término finito”, a alma reflete “potencialidades, sem uma estrutura localizada na manifestação”[2].
Entretanto, para aceitar a realidade desse “algo”, que Goswami chama de “alma”, esbarra-se sempre em um grande obstáculo: a necessidade da prova. Os não-crentes exigem que se demonstre de forma clara e consistente a existência dessa parte espiritual do homem. Segundo eles, é preciso ir além da simples opinião, ou da autoridade imposta pela fé, para não correr o risco de cairmos nas armadilhas do fanatismo. Esse é um argumento difícil de contradizer, já que uma prova definitiva ainda está longe de ser encontrada. Por essa razão, muitos estudiosos resolveram seguir um caminho alternativo: examinar a influência da espiritualidade nas diversas dimensões da vida humana.
Atualmente, são os neurocientistas que têm dado uma contribuição importante a esse tema ao estudarem alguns dos aspectos da mente humana, em especial sua capacidade de sentir um amplo espectro de emoções. Para alguns pesquisadores, tudo se explicaria se víssemos as emoções, e também os pensamentos, como o resultado de diferentes e complexas conexões nervosas que ocorrem dentro do cérebro. No entanto, essa visão materialista também tem seus problemas, pois não consegue responder a questões essenciais: se tudo se resume a conexões nervosas ou descargas elétricas entre células extremamente especializadas, como explicar a gama de sentimentos e pensamentos presentes em um único indivíduo? Onde estarão localizados? E por que nos influenciam de tantas maneiras?
O médico e neurocientista Ivan Izquierdo explica que o problema está no fato de que apesar da mente ser “até fácil de descrever em seus aspectos mais gerais”, sua “função mental em cada circunstância específica de nossas vidas continua sendo um mistério”[3]. Do mesmo modo, Fred Alan Wolf, outro físico teórico, especializado na relação entre a física e a consciência, acredita que para vencer o que ele chama de “inércia mental” será preciso a ruptura de um paradigma, abrindo espaço a uma nova maneira de pensar. Segundo ele, apenas dessa forma poderão
aparecer diferentes formas de avaliar o que se pensa e, com o surgimento de “novas ferramentas de avaliação, emergirão novas maneiras de sentir”[4]. Contudo, enquanto essas “novas ferramentas” não aparecem, os cientistas, até o momento, só dispõem de hipóteses e teorias que precisam ser validadas, de preferência com provas empíricas, mesmo quando se está lidando com “algo” imaterial.
E é nesse ponto que a maioria das religiões se pronuncia, pois, ao contrário da ciência, acredita ter as respostas a muitas das dúvidas que, há séculos, afligem o homem. Respostas com a capacidade de dar sustento emocional e espiritual em uma época na qual a morte é assistida via satélite, em tempo real, banalizando terrivelmente o sofrimento humano. A crença no transcendente gera alianças e restitui “um senso de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de oferecer”[5]. Além disso, mesmo que se relute em aceitar, intui-se não serem equações matemáticas, tubos de ensaios ou computadores de ponta que nos proporcionarão consolo ou paz de espírito nos momentos de necessidade.
De qualquer forma, em épocas conturbadas é importante encontrar espaço para esse tipo reflexão. Isso vale para crentes e não-crentes, pois a verdade é que, na maior parte do tempo, vivemos atrás de objetivos cada vez mais voltados para a conquista de bens materiais. Buscamos a satisfação pessoal sempre olhando para fora e acabamos esquecendo de procurá-la onde ela sempre esteve: dentro de nós. Educamos nossas crianças na crença de que a felicidade está em adquirir, comprar e ter. Deixamos de ensinar a importância de dar e compartilhar. E como resultado, acordamos, em muitos dias, nos sentindo incapazes e infelizes.
Acreditar em uma dimensão não física onde somos plenamente aceitos e compreendidos pode representar, para milhares de pessoas, a diferença entre uma vida produtiva e uma vida vazia de sentido. Esse tipo de conhecimento, no entanto, não pode ser medido ou quantificado, a ciência não tem controle sobre ele, assim como nenhuma religião ou grupo social. Logo, ao falarmos em ética e valores morais não devemos descartar a ideia de que, independentemente de religiões, somos seres constituídos de matéria e energia, corpo e espírito. Por essa razão, ciência e espiritualidade não precisam ser necessariamente excludentes; é possível acreditar e valorizar conquistas científicas ao mesmo tempo que se cultiva uma vida espiritual, atrelada ou não a uma religião. Do mesmo modo, é preciso entender que existem diferentes maneiras compreender e analisar a mesma questão, diferentes modos de se conectar com o mundo. E é essa capacidade de entendimento que nos faz mais humanos, “criaturas finitas, num mundo cheio de desafios, com mais perguntas do que respostas”[6].
[1] INCERTI, Fabiano. À escuta do infinito: estamos mais perto de Deus? Tradução Natan Marinho Junior. Curitiba: PUCPRESS, 2018(Edição Kindle).
[2] GOSWAMI, Amit. A Física da Alma: a explicação cientifica para a reencarnação, a imortalidade e experiências quase morte. São Paulo: Aleph, 2005, p. 29. (Série Novo Pensamento)
[3]IZQUIERDO, Ivan. A Mente Humana. Disponível: https://www.ufmg.br/online/arquivos/IZQUIERDO.pdf, p. 7. Acesso em :18 maio 2020.
[4] WOLF, Fred Alan. A Conexão entre a Mente e a Matéria: uma nova alquimia da ciência e do espírito. São Paulo: Editora Cultrix, 2003, p. 26.
[5] GLEISER, Marcelo. O caldeirão azul: o universo, o homem e seu espírito. Rio de Janeiro: Record, 2019 (Recurso eletrônico).
[6] GLEISER, Marcelo. O caldeirão azul: o universo, o homem e seu espírito. Rio de Janeiro: Record, 2019 (Recurso eletrônico).
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