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Os caminhos da Ciência (Parte1)

OS CAMINHOS DA CIÊNCIA I

Margarete Hülsendeger

 

O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou a ver.

Thomas Kuhn

 

A construção do conhecimento científico está fundamentada no estabelecimento de modelos que procuram explicar os fenômenos observados na natureza. O físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996), em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), explica que uma mudança na ciência só ocorre em períodos nos quais um determinado modelo encontra-se em vigor, pois os homens “cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos com as mesmas regras e padrões para prática científica”[1]. Por conta dessa obra, desde os anos 1960 tem-se utilizado, no lugar da palavra modelo, a expressão paradigma.

Na ciência os modelos podem ser construídos a partir da observação direta de fenômenos naturais, de dados obtidos experimentalmente ou ainda por meio de uma construção teórica iniciada na mente de um ou mais cientistas. Todos esses caminhos levam ao estabelecimento de teorias que poderão (ou não) ser validadas pela comunidade científica. Entretanto, não importa a origem desses modelos, o seu objetivo, na maioria dos casos, é o mesmo: a generalização. É importante que o modelo adotado consiga explicar a maior quantidade de fenômenos. Ele deve ser, na medida do possível, a regra, ou a lei, e não a exceção. Esse tem sido o caminho percorrido pela ciência no mundo ocidental, de Galileu Galilei (1564-1642) a Stephen Hawking (1942-2018). Cada um, à sua maneira, construiu modelos que vieram a se tornar marcos ou referenciais da ciência de sua época.

Desse modo, quando estudamos a história da ciência nos deparamos com diferentes modelos, adaptados para o pensamento dominante de um determinado período histórico. Para Aristóteles, por exemplo, o paradigma estava embasado na observação direta do que ocorria na natureza. A experimentação, com o sentido que lhe atribuímos nos dias de hoje, era considerada dispensável, pois o que importava era a possibilidade da realização de uma investigação “apaixonada”, mas “desinteressada”. Essa forma de interpretar os fenômenos naturais prevaleceu por séculos, sendo, inclusive, adotada e imposta pela Igreja Católica. Assim, durante muito tempo o homem olhou para a natureza e tentou explicá-la por meio desse modelo aristotélico.

Quando o modelo começou a apresentar falhas e inconsistências, outras explicações começaram a surgir; consequentemente, outros modelos iniciaram a sua luta para serem reconhecidos e aceitos. Para entender esse processo basta lembrar alguns nomes que hoje fazem parte da história da ciência e que estiveram envolvidos em algumas dessas batalhas: Giordano Bruno (queimado na fogueira acusado de heresia pela Inquisição), Nicolau Copérnico (morrendo sem publicar seus trabalhos, pois temia ser acusado de herege), Galileu Galilei (acusado pela Inquisição, foi obrigado a abjurar suas ideias, sendo mantido em prisão domiciliar até a sua morte), entre muitos outros.

Dessa forma, se as diferenças entre os modelos se tornavam irreconciliáveis chegava-se a um ponto que o modelo mais consistente, mais explicativo e que permitia uma maior generalização triunfava, ganhando não só a batalha, mas a guerra. Por isso, quando o modelo aristotélico não conseguiu mais se sustentar foi substituído por outro que entre outras ideias defendia: (1) a necessidade da comprovação de um fenômeno pela via da experimentação e da fundamentação teórica, de preferência usando a matemática; (2) a utilização da razão e da lógica na estruturação das hipóteses e na elaboração dos experimentos; (3) a completa separação entre as questões religiosas e as científicas. Esse modelo ficou conhecido, nos séculos que se seguiram, com o nome de modelo mecanicista ou cartesiano.

Para entender o contexto no qual surgiu esse modelo é importante recordar que ele aparece numa época na qual a ruptura com a Igreja e seus dogmas se fazia urgente e necessária. O conhecimento científico, nesse período, encontrava-se estagnado, pois dependia da aprovação dos “sábios” ou “doutores” da Igreja. Assim, a busca do conhecimento era condenada por considerá-la “pagã” e o “barbarismo que corrompia o corpo era o mesmo que corrompia a mente; qualquer apropriação de informação através dos sentidos decerto só poderia levar à corrupção da alma”[2]. Dentro desse ambiente, surgem nomes como Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), entre outros. Todos defendendo que a ciência devia caminhar sozinha, descobrindo suas próprias leis e limites, cabendo ao homem a tarefa de desvendar a natureza, observando-a e dissecando-a nos seus mínimos detalhes.

Margarete Hülsendeger – Possui graduação em Licenciatura Plena em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1985), Mestrado em Educação em Ciências e Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002-2004), Mestrado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2014-2015) e Doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2016-2020). Foi professora titular na disciplina de Física em escolas de ensino particular. É escritora, com textos publicados em revistas e sites literários, capítulos de livros, publicando, em 2011, pela EDIPUCRS, obra intitulada “E Todavia se Move” e, pela mesma editora, em 2014, a obra “Um diálogo improvável: homens e mulheres que fizeram história”.

É, portanto, nessa época que surge com força a ideia de que assuntos relacionados ao espírito não deviam e não podiam ser discutidos por meio de uma abordagem científica. Como resultado, a Física separou-se da Metafísica, devendo a primeira tratar do universo dos fenômenos naturais palpáveis e concretos, enquanto a segunda devia preocupar-se com os aspectos mais transcendentes da natureza humana. Nesse novo modelo, o homem passou a ser visto como um mecanismo que precisava ser desmontado para ser compreendido e suas partes examinadas, como fazemos com uma máquina quando apresenta um mau funcionamento. O homem deixou, então, de ter uma natureza una, passando a ser apenas a soma de suas partes, e a ciência, livre das amarras da religião, deu seu grande salto, realizando conquistas antes inimagináveis.

Esse pensamento perpetuou-se até o início do século XX, chegando-se a acreditar que a ciência, principalmente a Física, havia atingido o seu ápice. Muitos cientistas, entre eles o físico William Thompson (1824-1907), argumentaram que nada de mais relevante iria ser descoberto e que cabia ao homem, a partir de agora, aprimorar seus conhecimentos para que novas tecnologias pudessem ser criadas com o objetivo de melhorar a qualidade de vida do ser humano. Como resultado, o modelo mecanicista se tornou tão explicativo, permitindo a generalização de tantos fenômenos, que poucos se atreviam a questioná-lo.

O problema é que junto com suas inúmeras conquistas, a ciência revestiu-se de uma tal aura de infalibilidade que qualquer teoria que a desafiasse era vista com ceticismo pela maioria dos cientistas. Além disso, os métodos utilizados pelas ciências naturais se tornaram padrão para todas as outras áreas do conhecimento, independentemente de suas especificidades. A incerteza deixou de fazer parte da estrutura do pensamento científico e esqueceu-se que a busca pelo desconhecido, o inexplorado, era a essência da ciência. Apenas quando o século XIX tornou-se XX se tornaria clara a necessidade de um modelo que abrisse espaço para uma nova forma de observar e compreender a natureza. Um modelo no qual os conceitos de “verdade” e “certeza” seriam severamente questionados.

Continua…

[1] KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 30.

[2] GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo: dos mitos de criação ao big bang. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 95.

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