UMA DÍVIDA IMPOSSÍVEL DE PAGAR
Margarete Hülsendeger
El mal engendra el mal; el primer padecimiento insinúa el placer de atormentar a otro; la idea del mal no puede acudir a la mente del hombre sin implicar el deseo de ponerla en práctica (LÉRMONTOV, 2007: 113)[1].
O jornalista e escritor paranaense Laurentino Gomes se tornou conhecido quando, em 2008, conseguiu o que poucos historiadores profissionais conseguem: tornar a história não só compreensível, mas atraente para todos aqueles que, sem uma formação especializada, têm interesse, ou curiosidade, sobre fatos que dizem respeito à história do Brasil. O livro que o lançou como escritor foi 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Essa obra, além de se tornar um verdadeiro best-seller, recebeu o prêmio de melhor ensaio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Jabuti de Literatura na categoria de livro-reportagem e de “livro do ano” na categoria de não-ficção.
Depois de 1808 outras obras se seguiram com o mesmo sucesso de público: 1822 (2010) e 1889 (2013). Com uma linguagem compreensível para os não iniciados, Laurentino traça um painel que abarca 81 anos da história brasileira, começando com a chegada da corte portuguesa ao Brasil (1808), passando pelo processo de independência (1822) e concluindo com a proclamação da república (1889). Como reforça a escritora e antropóloga Lilia Schwarcz, o jornalista “tem o mérito de, com uma linguagem agradável e acessível, divulgar e ampliar conhecimentos históricos muitas vezes restritos à academia”[2].
Em 2019 Laurentino avança trazendo ao público leitor uma nova obra, ou melhor, uma nova série de livros cujo objetivo é abordar um dos temas mais dolorosos e sombrios da nossa história. O título, como aconteceu com seus outros livros, é simples e direto, Escravidão[3]. Digo que se trata de uma série porque o próprio autor na introdução explica que para concretizar seu projeto de traçar um amplo panorama sobre a questão da escravidão precisaria escrever um livro com cerca de 1500 páginas. Desse modo, Laurentino optou por escrever essa história em três volumes a serem publicados um por ano – 2019, 2020, 2021 – de tal modo que, o último aparecerá nas livrarias brasileiras às vésperas da comemoração do bicentenário da Independência.
A capa desse primeiro volume já nos prepara para o que vamos encontrar: o fundo é preto e a palavra “Escravidão” aparece escrita na cor vermelha. Seu subtítulo também orienta o leitor para o período que essa obra irá abordar: “Do primeiro leilão de cativos de Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”, ou seja, desde meados do século XV, quando começam as incursões e capturas de escravos pelos portugueses na costa da África, até o final do século XVII, perfazendo 250 anos de história. No entanto, é possível perceber que o centro da narrativa está na África, pois, segundo o autor, não é possível escrever sobre a escravidão no Brasil sem iniciar por esse continente.
Mesmo que Laurentino deixe claro que sua história é uma entre muitas, não se pode ignorar seu esforço em trazer o maior número de informações sobre o tema da escravidão. Assim, encontraremos nesse primeiro volume dados sobre a escravidão em diversos períodos da história da humanidade, assim como outros lugares onde ela se fez presente: “na Grécia Antiga, no Egito dos faraós, no Império Romano, nos domínios do islã e na própria África antes da chegada dos portugueses”. Ao longo da obra, Laurentino aponta suas fontes, assim como dá detalhes sobre seu trabalho como pesquisador viajando por diferentes partes da África e da Europa colhendo dados que fundamentam e enriquecem sua narrativa.
O quadro que o autor traça nesse volume é, na falta de melhores palavras, brutal e violento. É difícil, por exemplo, discutir com os números que ele nos traz: quarenta milhões de seres humanos desaparecidos do continente americano desde a chegada de Colombo ao Caribe, em 1492; redução dos indígenas brasileiros a 700 mil no ano da chegada da corte portuguesa ao Brasil, significando apenas 20% do seu contingente original que era de 3 a 4 milhões; 12.521.337 seres humanos embarcados para a travessia do Atlântico em cerca de 36 mil viagens de navios negreiros entre 1500 e 1867; 1.818.680 mortos nesse mesmo período; 4,9 milhões de cativos somente no Brasil.
Esses números impressionantes refletem principalmente como o “negócio” da escravidão era lucrativo. Um lucro do qual usufruíram todas as camadas sociais que dele participaram: desde a
realeza europeia, passando pelos chefes das tribos africanas e capitães dos navios, até os proprietários das inúmeras lavouras de cana-de-açúcar que começaram a aparecer em território americano. E nessa locupletação absurda nem mesmo aqueles que deveriam “proteger” e “amparar” estiveram ausentes. Laurentino Gomes explica que durante “cerca de quatrocentos anos, padres, bispos, cardeais e ordens religiosas não apenas apoiaram como participaram do tráfico de escravos e lucraram com ele”. Conforme o autor, praticamente quase todas as ordens religiosas e conventos católicos no Brasil, em Angola e outras regiões da África e da América possuíram escravos. O próprio padre Antonio Vieira veria nos escravizados negros um “grande milagre” da Nossa Senhora do Rosário pois, de acordo com ele, ao escravizá-los estar-se-ia salvando-os da barbárie e do paganismo que reinava na África.
Apesar de “Escravidão – Volume I” ser de leitura fácil, sem jargões que possam confundir o leitor, o assunto tratado é difícil e extremamente complexo. No entanto, a despeito dessa complexidade, Laurentino não deixa passar quase nada, fazendo vívidas descrições de como os cativos eram perseguidos e capturados até como era o seu trabalho nas usinas de cana-de-açúcar no interior do Brasil. Sempre trazendo exemplos corroborados pelos documentos que apresenta ao final do livro, o jornalista paranaense nos descreve como era a vida de índios e negros durante os 250 anos que a obra cobre. Os navios negreiros são descritos como uma estranha combinação de máquina de guerra, prisão móvel e fábrica e os engenhos aparecem como uma visão saída do inferno com suas fornalhas permanentemente alimentadas pelos escravizados, sujeitos a queimaduras terríveis que, na maioria das vezes, não eram tratadas.
As imagens que Laurentino Gomes nos apresenta estão carregadas de sofrimento, dor e perda. Contudo, como brasileiros precisamos ler, nos informar sobre um tema tão tenebroso como foi o da escravidão. Esse conhecimento nos permitirá entender que os crimes cometidos no passado contra negros e índios seriam hoje considerados crimes contra a humanidade. Do mesmo modo, é importante que se aceite que o Brasil foi construído tendo como base o sangue de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes. E, finalmente, é preciso compreender que existem certas dívidas que são impossíveis de pagar.
[1] LÉRMONTOV, Mijaíl Y. Un héroe de nuestro tiempo. Prólogo de Vladimir Nabokov. Traducción Luis Abollado Vargas. Madrid: Nórdica libros, 2007.
“O mal gera o mal; o primeiro sofrimento insinua o prazer de atormentar o outro; a ideia do mal não pode surgir na mente do homem sem significar o desejo de colocá-la em prática” (Tradução minha).
[2] Redação Época, Laurentino Gomes, por Lilia Schwarcz, Revista Época, 05 de dezembro de 2008.
[3] GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos de Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
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