Nathália Luiz de Freitas[*]
Lorena Temponi Boechat[†]
RESUMO
Busca-se problematizar e refletir sobre alguns dos desafios que professores e alunos tendem a enfrentar em seus processos, dinâmicas e atividades de ensino-aprendizagem ao longo do período de isolamento social desencadeado pela pandemia de COVID-19. Estes se baseiam em três aspectos: i) na distinção entre ensino remoto e educação a distância; ii) na discussão de questões teórico-metodológicas e socioculturais relativas ao desenvolvimento de atividades pedagógicas remotamente; e iii) no suporte governamental oferecido às práticas educativas não-presenciais.
Palavras-chave: Ensino Remoto; Isolamento Social; Educação a Distância; Processos de Ensino-aprendizagem.
ABSTRACT
We problematize and reflect on some challenges that teachers and students face in their teaching-learning processes, dynamics and activities during the period of social isolation triggered by the COVID-19 pandemic. This is based on three aspects: i) distinction between remote education and distance education; ii) discussion of theoretical-methodological and socio-cultural issues related to the development of educational activities remotely; and iii) government support available for non-classroom educational practices.
Keywords: Remote Teaching; Social Isolation; Distance Education; Learning-Teaching process.
Considerações Iniciais
Ao longo da recente história da democratização ou massificação educacional no Brasil (PAIVA et. al, 1998), a presencialidade tem sido uma de suas principais características, sobretudo, no que se refere à educação básica. Logo, a sala de aula institui-se como o espaço privilegiado para o desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem, que incluem tanto o atendimento às exigências curriculares de formação acadêmica, quanto a estimulação de habilidades não conteudistas, como a socialização, a autonomia, a cooperação e a disciplina.
Com a chegada da era digital, expressão “que se aplica à onipresença da informação como entorno simbólico e de socialização de crianças, adolescentes, jovens e adultos” (LECLERC, 2015, p. 359), a educação, notadamente em nível superior, passa a se servir de meios e artefatos então possibilitados por esse novo contexto tecnológico, indissociável do uso da internet. É justamente nesse cenário que a modalidade de educação a distância (EaD), nos moldes em que é configurada atualmente, ganha espaço e se institucionaliza.
Nessa ótica, há de se considerar que enquanto os níveis fundamental e médio da educação básica no Brasil estão estruturados sob a égide do ensino presencial, cerca de 21% dos cursos de graduação de instituições educacionais brasileiras são oferecidos a partir da modalidade à distância (BRASIL, 2018). Portanto, a grande maioria dos alunos e professores no país ainda tem na sala de aula o seu espaço de estudo e trabalho, respectivamente, de modo que a passagem abrupta para o ensino remoto inevitavelmente gera desafios significativos para que esses atores sociais cumpram satisfatoriamente seus papeis.
Com base nesse arrazoado e considerando o período de isolamento social instaurado no Brasil em decorrência da pandemia de COVID-19, nos propomos a algumas reflexões sobre a adoção do ensino remoto como estratégia emergencial para a manutenção das atividades de ensino-aprendizagem em diferentes níveis de escolarização.
Ensino Remoto e Educação a Distância
O primeiro desafio que se coloca é a diferenciação entre ensino remoto e EaD, uma vez que, em termos gerais, o primeiro se trata de um meio pedagógico, ao passo que o segundo consiste em uma modalidade educacional legalmente instituída. O fato de os termos “remoto” e “distância” fazerem parte de um mesmo campo semântico, relativo a trajetórias de/no tempo e espaço parece contribuir para uma certa confusão definicional. A seguir, traçamos uma diferenciação entre ensino remoto e educação a distância.
A EaD é definida como uma “modalidade de educação efetivada através do intenso uso de tecnologias de informação e comunicação, onde professores e alunos estão separados fisicamente no espaço e/ou no tempo” (ALVES, 2011, p. 83). Por se tratar de uma modalidade de ensino-aprendizagem, é regulamentada com base em legislação específica, podendo ser implementada na educação básica e na educação superior (SOUSA; SOUSA, 2017, p. 272).
Partindo da definição de “remoto” como “1. Muito afastado no tempo ou no espaço […]. 2. Que se pode adicionar ou conectar a distância.” (BECHARA, 2011, p. 1001), é possível depreender que o ensino remoto opera de forma não presencial, tal qual a EaD. Contudo, diferentemente da educação a distância, o ensino remoto não possui regulamentação, não constitui uma modalidade educacional e, tomado amplamente, não é pedagogicamente estruturado.
Nessa perspectiva, em tempos de isolamento social, coexistem a EaD e o ensino remoto. Enquanto aquela, representada pelo funcionamento dos seus cursos, mantém seu percurso e funcionalidades formativas, este é, em boa parte das escolas e instituições de ensino superior, implementado pela primeira vez, ou, se já utilizado, passa a ser reorganizado e ressignificado. O fato é que o uso em larga escala do ensino remoto demanda adaptações curriculares, metodológicas e didáticas que reconfiguram as formas de ensinar e os modos de aprender.
Aspectos teóricos, metodológicos e socioculturais atinentes à pedagogia remota
Por se tratar de uma situação bastante recente, ainda não há dados quantitativos e qualitativos suficientes para apurar a eficiência pedagógica do ensino remoto na educação básica e na educação superior nesse período de isolamento social. No entanto, tendo em vista alguns pressupostos teórico-metodológicos, dados socioeconômicos amplamente divulgados e conhecimentos socioculturais, torna-se possível levantar alguns fatores que incidem sobre os processos de ensino-aprendizagem desenvolvidos remotamente.
O primeiro aspecto diz respeito às ferramentas utilizadas no ensino remoto. Para tanto, é fundamental considerar que, na era digital, o entorno evolui da televisão para diferentes telas, dispositivos e sistemas computacionais que associam interações narrativas visuo-auditivas complexas ligadas via web (LECLERC, 2015). Logo, esse novo modelo exige um tipo de decodificação audiovisual específico, diferente daqueles utilizados para a leitura, pois “o mundo da tela é muito diferente da página escrita, requer uma vida intelectual, perceptiva, associativa e reativa muito distinta” (GÓMEZ, 2015, p. 20).
A adoção desses recursos demanda que professores saibam como usá-los didaticamente, o que requer formação específica tanto em razão da complexidade das diferentes ferramentas tecnológicas disponíveis quanto da existência de aparatos metodológicos que se adequam de forma mais apropriada à pedagogia remota, como as metodologias ativas. Além dessa exigência formativa dos docentes, há questões ligadas à necessidade de desenvolvimento de autonomia e disciplina dos alunos, até então não habituados ao ensino remoto, já que o mundo digital configura um mosaico de informações que frequentemente gera perplexidade e desinformação em vez de construção de conhecimento (GÓMEZ, 2015).
Outro aspecto que se coloca é o acesso da população acadêmica às soluções e dispositivos tecnológicos usados no ensino remoto, tendo em vista que, como assegura a Constituição Federal, em seu artigo 205, “a Educação é um direito de todos, visando [a]o pleno desenvolvimento da pessoa” (BRASIL, 1988). Levando em conta que a distribuição de renda no Brasil é caracterizada por uma profunda desigualdade social e econômica – os trabalhadores com 10% de maiores rendimentos recebem 12,4 vezes mais do que os 40% com menores rendimentos (IBGE, 2017) – dificilmente haverá condições de se garantir que alunos mais pobres disponham das ferramentas necessárias para aprender remotamente.
E, finalmente, mas, sem ainda esgotar todos os fatores que permeiam o ensino remoto em regime emergencial, tem-se a necessidade de reorganização dos papeis de aluno e professor no processo educativo. Vale lembrar que abordagens mais contemporâneas da educação, sobretudo aquelas afiliadas à pedagogia de projetos (PRADO, 2003), advogam pela reformulação dessas funções, de modo que o professor passa de matriz detentora e transportadora do conhecimento para o responsável pela organização, orientação e mediação ao longo do processo de construção do conhecimento. De igual maneira, o aluno deixa de ser concebido como o receptáculo de saberes para se tornar o agente de sua própria aprendizagem.
No ensino remoto, tal reformulação não só é recomendada como é fundamental para o sucesso das práticas pedagógicas. Sem essa modificação de papeis, que vem necessariamente acompanhada do manejo de recursos didáticos atrelados às tecnologias digitais, dificilmente, são desencadeados processos de aprendizagem significativos. Em geral, mantendo-se posturas de ensino mais tradicionais, o máximo que se consegue é transpor práticas do ensino presencial despojadas da interação com mediação presencial do professor.
Diretrizes governamentais para a educação não-presencial
Ainda que a educação a distância, que, ao contrário do ensino remoto, é uma modalidade educacional, esteja crescendo substancialmente no país, tendo se tornado o “‘carro-chefe’ das políticas de expansão do Ensino Superior e de formação inicial e continuada de professores no Brasil” (CERDAS; CORREA; OLIVEIRA, 2015, p. 3405), ela enfrenta muitos desafios. Isso porque, além de também ser recente (e, em parte, justamente por isso), de forma geral, a expansão da EaD no país não veio acompanhada da adequação necessária das infraestruturas institucionais, de mobilização suficiente de recursos financeiros, assim como da formação específica e em larga escala dos profissionais da educação responsáveis por formar estudantes nessa modalidade.
Essa realidade é ainda mais desfavorável no ensino remoto, que sequer figura em diretrizes governamentais específicas voltadas para os diferentes níveis de ensino. A falta dessa institucionalização é problemática porque, além de não haver recomendações e parâmetros estabelecidos, bem como inexistir o oferecimento de formações profissionais, gera o risco de exclusão dos alunos que não têm acesso às ferramentas tecnológicas e recursos necessários às práticas acadêmicas desenvolvidas remotamente.
No que diz respeito ao desenvolvimento de atividades educacionais formais durante o isolamento social desencadeado pela pandemia de COVID-19, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 28/04/2020, sob o Parecer CNE/CP nº 5/2020, diretrizes que orientam instituições de ensino superior e escolas da educação básica. No documento, são propostas normas gerais para a reposição presencial de carga horária após o fim do período de emergência e incentivado o desenvolvimento de atividades remotas (como plataformas virtuais, meios digitais e redes sociais) tanto para abater horas letivas como para manter o vínculo entre os alunos e as instituições de ensino.
Nesse prisma, escolas e universidades passam a contar com a prerrogativa legal para utilizar o ensino remoto de forma a contabilizar a carga horária das atividades desenvolvidas à distância. No entanto, de maneira geral, essas instituições carecem de orientações teórico-metodológicas pontuais, profissionais apropriadamente formados e infraestrutura física em condições satisfatórias para oportunizar a aprendizagem não-presencial.
Considerações finais
Em um contexto em que a interação presencial deixa de ser possível, o uso das tecnologias digitais se torna um aliado de professores, gestores educacionais e alunos na manutenção dos processos de ensino-aprendizagem. Mais do que um aliado, o emprego de tais recursos poderia ser um instrumental riquíssimo e eficiente se os docentes fossem devidamente formados para sua implementação e todos os estudantes tivessem acesso pleno a eles.
Como essas ponderações estão longe da realidade da educação brasileira atual, o ensino remoto em tempos de isolamento social se encontra em fase embrionária, devendo ser (re)implementado e aprimorado constantemente. Mesmo que se trate de um contexto emergencial, no qual o planejamento é feito quase que de forma concomitante a sua execução, o sucesso das práticas educacionais desenvolvidas remotamente parece estar diretamente associado à preparação dos professores e à oportunização discente, por meio da democratização do acesso às tecnologias de aprendizagem não-presenciais.
Referências
ALVES, Lucineia. Educação à Distância: Conceitos e história no Brasil e no mundo. RBAAD – Associação Brasileira de Educação à Distância. v. 10, 2011.
BECHARA, Evanildo. Dicionário da Língua Portuguesa. 1ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Parecer CNE/CP nº 5, de 28 de abril de 2020.
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, Senado, 1988.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior 2017: Divulgação dos Principais Resultados. Brasília, DF: Inep, 2018.
CERDAS, Luciene; CÔRREA, Marcelo da Silva; OLIVEIRA, Edmundo. Alves FORMAÇÃO DE PROFESSORES A DISTÂNCIA: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS. In: Isabel Maria Sabino de Farias; Maria Socorro Lucena Lima; Maria Marina Dias Cavalcante; José Albio Moreira de Sales. (Org.). Didática e a prática de ensino na relação com a formação de professores. 1ed.Fortaleza/CE: EdUECE, 2015, v. 2, p. 3405-3417.
GÓMEZ, Angel I. Perez. Educação na Era Digital: a escola educativa. Tradução Marisa Guedes, Porto Alegre: Penso, 2015. 192 p.p.
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. 2017. IBGE, Coordenação de População e. Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2017.
LECLERC, Gesuína de Fátima Elias. Resenha – Educação na Era Digital: a escola educativa. Educ. rev. vol.31 no.4 Belo Horizonte Oct./Dec. 2015 p. 359-365.
PAIVA, Vanilda, GUIMARÃES, Eloísa, PAIVA, Elizabeth e DURÃO, Anna Violeta. “Revolução educacional e contradições da massificação do ensino”. Educação & Contemporaneidade, III (3): 44-99, 1998.
PRADO, Maria Elisabette Brisola Brito. Pedagogia de Projetos. Série “Pedagogia de Projetos e Integração de Mídias” – Programa Salto para o Futuro, Setembro, 2003.
SOUSA, José Franklin; SOUSA, Élissa. Moraes. Direito à Educação no Brasil. Joinvile: Clube dos autores, 2017.
Como citar
FREITAS, Nathália Luiz.; BOECHAT, Lorena. Temponi. Desafios do ensino remoto em tempos de isolamento social. Revista P@rtes, 2020.
[*] Docente das áreas de Linguística e Língua Portuguesa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – IFSULDEMINAS – campus Poços de Caldas. Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: nathalia.freitas@ifsuldeminas.edu.br
[†] Docente das áreas de informática e pedagogia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais – IFSULDEMINAS – campus Poços de Caldas. Doutora em Engenharia Agrícola pela Universidade Federal de Viçosa. E-mail: lorena.boechat@ifsuldeminas.edu.br