A LOUCURA DO HOMEM COMUM
Margarete Hülsendeger
As pessoas estão cada vez mais idiotas, mas cheias de opinião.
Philip Roth
Existem muitas formas de loucura, desde as mais leves até as mais extremas. Também há diversas definições, pois, muitas vezes, tudo depende da época e do contexto no qual o indivíduo está inserido. Se tomarmos, por exemplo, o tratamento dado às mulheres, perceberemos que quando uma mulher se insurgia contra a dominação imposta pela sociedade era frequentemente rotulada de histérica ou coisa pior. Portanto, quando se tratava da mulher, a necessidade de lutar pelos seus direitos sempre esteve de alguma forma associada a algum tipo de doença nervosa ou desvio comportamental.
No entanto, há uma forma de loucura que independe de gênero, status social, idade e, até mesmo, de nível de cultural. Homens e mulheres, ricos e pobres, velhos e moços, intelectuais e analfabetos podem se tornar, do dia para noite, completamente cegos a uma doutrina ou a um sistema de ideias. A esse tipo excesso de admiração dá-se o nome de fanatismo e os que se deixam dominar por ele são chamados de fanáticos. Segundo o Conselho Nacional de Psicologia, o fanático tem uma visão de mundo maniqueísta, cultivando a dicotomia bem/mal, onde o mal reside naquilo e naqueles que contrariam o seu modo de pensar. As condutas desses indivíduos são, geralmente, irracionais e agressivas e podem inclusive chegar a extremos perigosos, como utilizar a violência para impor o seu ponto de vista.
Existem, ao longo da história, muitos exemplos desse tipo de comportamento, em geral associados a motivações de natureza religiosa ou política. No entanto, acredito que o caso mais emblemático, sobretudo, por conta da sua proximidade temporal, foi observado na Alemanha nos anos 1930 e 1940. Nesse período, quando o país ainda enfrentava as consequências da Primeira Guerra Mundial, surgiu um movimento que combinava ideias antissemitas com um nacionalismo extremista e informações supostamente científicas sobre a superioridade do homem branco. Esse movimento organizou-se em torno de um partido político de extrema-direita, o nacional-socialista, mais comumente conhecido como nazista. Sua concepção de mundo, exposta e defendida por homens como Paul Joseph Goebbels (1897-1945) e Alfred Rosenberg (1893-1946), foi uma espécie de “onda” que mobilizou e seduziu milhões de pessoas, não só em torno de suas ideias, mas no culto de um único indivíduo, Adolf Hitler (1889-1945).
A quantidade de livros e filmes produzidos sobre o tema é imenso, tal o impacto desse “fenômeno” no mundo moderno. Recentemente, concorreu ao Oscar (2020) o filme “Jojo Rabbit”, uma sátira antinazista na qual o protagonista é um menino alemão de 10 anos cujo amigo imaginário é Hitler. O filme, dirigido por Taika Waititi, usa o humor para combater o fanatismo e o fascismo seguindo os passos de Charlie Chaplin (1889-1977) quando fez “O grande ditador” (1940). Portanto, mesmo que já tenham se passado mais de 70 anos do término da Segunda Guerra Mundial, o trauma do nazismo continua muito presente. Talvez por isso a HBO tenha decidido produzir uma série baseada em um livro de Philip Roth (1933-2018) explorando mais uma vez esse assunto.
A série tem o mesmo nome do livro, The Plot Against America (em português Complô contra a América[1]) publicado em 2004. Essa obra baseia sua trama na seguinte questão: o que teria acontecido se, nas eleições dos Estados Unidos, de 1940, um candidato republicano, pró-nazismo, antissemita e isolacionista como o popular aviador Charles Lindenberg (1902-1974) tivesse tirado a vitória do candidato democrata Franklin Roosevelt (1882-1945)?
Obviamente essa questão acaba suscitando outras perguntas: como reagiriam os americanos se houvesse um plano de trazer para os Estados Unidos as mesmas políticas implementadas por Hitler na Alemanha? Qual seria o destino de milhões de judeus americanos? Será que se criaria nos Estados Unidos o mesmo ambiente de tensão e fanatismo que apareceram na Alemanha nazista?
Não vou responder a nenhuma dessas perguntas porque não só estaria dando vários spoilers da série como impedindo todos os que ainda não leram o livro de Philip Roth de apreciarem uma das grandes obras do autor americano. No entanto, posso dizer que, assim como em seus outros romances, em Complô contra a América aparecem todas as qualidades que tornaram Roth um dos maiores escritores norte-americanos da segunda metade do século XX. Nessa obra encontraremos indagações sobre as zonas mais obscuras da natureza humana, aproveitaremos a capacidade do autor de colocar em evidência a risível transcendência do homem e estaremos na presença de um narrador apegado à realidade de seu tempo, de seu país e do mundo.
Contudo, em Complô contra a América, Roth também se esmera em nos mostrar a relativa facilidade com que, nas condições certas, é possível manipular a mente humana fazendo aflorar preconceitos, na maioria das vezes escondidos por debaixo de uma fina camada de civilidade. Do mesmo modo, perceberemos que os “heróis” de Roth nada têm de heroico, pelo menos no sentido clássico da palavra, sendo apenas homens e mulheres comuns, envolvidos com suas atividades diárias, e que de um momento para o outro são arrancados de suas vidas para enfrentarem desafios e provações. Por essa razão, é muito difícil não se identificar com os personagens criados pelo autor americano o que torna a leitura de sua obra uma experiência fascinante.
Em tempos nos quais a expressão “mito” virou uma espécie de grito de guerra, o livro de Roth abre espaço para refletirmos sobre a maneira como o ser humano reage diante de situações que despertam emoções violentas e irracionais, capazes de transformar homens e mulheres simples em uma massa incontrolável de fanáticos. Uma massa que, ao seguir os ditames de um indivíduo ou de um grupo, torna-se imune ao diálogo e se dispõe a colocar em risco os princípios nos quais uma sociedade democrática se apoia. Observar, mesmo sendo por meio da ficção, a forma insidiosa como esse tipo de movimento se constrói é como voltar a um tempo no qual não só se ignora os direitos fundamentais do homem, mas acredita-se que a única maneira de governar seja pela força e a coerção. Philip Roth, e agora a HBO, expõe essa realidade de maneira clara e contundente, mas apenas para quem tiver ouvidos para ouvir, olhos para ver e uma mente suficientemente aberta para entender. Leia Complô contra a América e depois assista a série e tire suas próprias conclusões. Eu recomendo!
[1] ROTH, Philip. Complô contra a América. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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