*Daniel Medeiros
Há muito de verdade em se dizer que se a China tivesse um governo democrático e transparente, os efeitos da pandemia do coronavírus poderiam ser tratados em um prazo mais curto. Isso porque no dia 30 de dezembro de 2019, o médico chinês Li Wenliang alertou sobre a possível epidemia e, em vez de ter sido escutado, quase foi preso. Para voltar para casa, assinou um termo no qual se comprometia a não mais tocar no assunto. No dia 6 de fevereiro, Li morreu em decorrência da doença. No dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde assumiu que havia uma pandemia.
As ditaduras, ao contrário das democracias, julgam-se perfeitas, acabadas. Qualquer questionamento ou mesmo sugestão é visto como uma ameaça ao regime, pois pode desmascará-lo, como na história infantil do rei nu. As ditaduras são, de certa forma, coisas infantis. Ideias e práticas que querem se ver como as melhores, as superiores e, obviamente, os que discordam é porque invejam e querem destruir algo que, na sua perfeição, nunca pode ser atingido. Mesmo quando o que a atinge é uma epidemia letal.
Em 1971, o Brasil era governado por um general que achava que não era ditador. Detestava que o chamassem assim. O Brasil vivia o período do chamado “milagre econômico” e as taxas de crescimento do PIB sombreavam a concentração de renda e o aumento da pobreza na periferia dos grandes centros e nos rincões do país. Mas isso era “fantasia” dos comunistas, devidamente calados para que não ficassem distorcendo as coisas. “Brasil: ame-o ou deixe-o”, dizia a publicidade oficial, usando o imperativo como se fosse um diminutivo carinhoso.
Pois justamente nesses bairros periféricos da grande cidade de São Paulo, onde o milagre não chegou, começou um surto de meningite. Como toda doença, essa também não tinha ideologia – e logo a classe média e os endinheirados começaram a ser atingidos. Entre 1971 e 1973, a meningite matou 14% das pessoas que a contraíram, particularmente crianças. O governo do ditador Médici, porém, proibiu a divulgação dos dados e a adoção de medidas de prevenção, para não causar “histeria” na população. Há indícios de que muitos dos cadáveres das vítimas da meningite tenham sido enterrados na vala clandestina de perus, buscando assim burlar as notificações oficiais de óbitos.
Somente em janeiro de 1974, já no governo do general Geisel, quando a meningite atingia seis vezes mais pessoas do que um ano antes, o governo reconheceu o problema e criou uma comissão para tratar do assunto, importando injeções e realizando uma campanha nacional de vacinação. Assim como aconteceu com o médico chinês, é impossível calcular o número de pessoas que poderiam ter sido poupadas, o número de famílias que não teriam de passar pelo trauma e pelo sofrimento da perda de um ente querido, se o governo tivesse alertado e assumido suas responsabilidades desde o primeiro momento.
Mas as ditaduras são vaidosas e acreditam que todos têm inveja delas e que querem prejudicá-las e, por isso, espalham boatos e exageram nos fatos. Um governo que acha que vai tão bem não pode sofrer com esse tipo de acusação e, por isso, a única explicação possível é que essas acusações são distorcidas ou declaradamente inventadas. Logo, não podem ser endossadas. E, se possível, devem ser ocultadas.
Não se pode negar que, no momento em que o governo chinês admitiu o surto do coronavírus, tomou medidas excepcionais para combatê-lo e que, neste momento, tem a doença sob controle, enquanto ela se espalha pela Europa e Américas. A negligência e a irresponsabilidade são armas perigosas nas mãos de governantes narcisistas e ineptos. Erros que a terra cobre, mas a memória pública não esquece.
*Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.