Crônicas Margarete Hülsendeger Margarete Hülsendeger Reflexão

O medo nosso de cada dia

O MEDO NOSSO DE CADA DIA

Margarete Hülsendeger

 

Todos estamos em perigo e todos somos perigosos para os demais. Só existem três papeis possíveis para representar: o de perpetradores, o de vítimas e o de “danos colaterais”.

Zygmunt Bauman

 

ZYGMUNT BAUMAN

O sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) tornou-se conhecido por dizer que vivíamos em um tempo no qual as relações entre os indivíduos estariam se tornando cada vez mais esporádicas e menos duradouras. Segundo ele, essa situação poderia ser comparada a tentativa de segurar um líquido, ou seja, os relacionamentos de qualquer natureza estariam escorrendo por entre os nossos dedos. Esse pensamento aparece em diferentes obras. Em Amor líquido (2004)[1], por exemplo, Bauman diz que as relações amorosas deixaram de ser caracterizadas pela união e passaram a ser consideradas apenas um acúmulo de experiências, tornando-se a insegurança uma parte estrutural da constituição do homem contemporâneo.

Em 2006, quando publicou Medo líquido[2], Bauman aprofundaria essas ideias. A obra tem como proposta abordar a origem, a dinâmica e os usos do medo que, segundo ele, é o nome que costumamos dar as muitas incertezas que as ameaças à nossa volta nos despertam. E quanto mais difusas, dispersas e pouco claras são essas ameaças mais o medo se apodera de nós, pois, não sabendo sua origem, nos tornamos presas fáceis do terror. Como consequência passamos a nos sentir inseguros e vulneráveis, já que, na maioria das vezes, o que nos apavora não é a quantidade ou a natureza das ameaças, mas se temos confiança nas defesas disponíveis.

Entre os muitos medos que desde sempre aterrorizaram o homem o mais visceral e primitivo é o de morrer. O motivo é que, de acordo com Bauman, a morte é o único evento sem passado e muito menos futuro, significando que nada irá ocorrer a partir desse momento. Por essa razão, a morte sempre será incompreensível para os vivos, transformando-se na encarnação do “desconhecido” e, portanto, plena e realmente incognoscível. Entre os animais, apenas o homem tem consciência da inexorabilidade da morte, passando toda a sua existência sabendo que um dia terá de enfrentá-la, não importando sua condição enquanto estava vivo.

Para enfrentar esse destino, o ser humano criou e ainda cria estratégias para tornar sua experiência mortal a mais agradável possível, entre elas um pensamento recorrente em muitas culturas: a vida continua depois da morte. Conforme o sociólogo polonês, essa ideia de que a vida após a morte está garantida pode se transformar em uma faca de dois gumes (felicidade ou pesadelo), pois tudo dependerá da forma como iremos nos comportar durante a vida. No entanto, apesar dessa “inconveniência”, Bauman defende que essa narrativa adotada por várias religiões foi uma jogada de mestre porque converteu a potência destruidora da morte em um poder formidável que dá brilho à vida.

Na sua análise o filósofo polonês não pode deixar de mencionar os efeitos da globalização, considerados por ele extremamente negativos e uma das principais causas dos medos que assombram o mundo contemporâneo. Entre esses medos ele aponta as incertezas geradas pela falta de segurança, pela revolução na informática, pelo aumento do armamento e do terrorismo. Segundo ele, essas incertezas provocaram o surgimento de uma globalização dos preconceitos que, por sua vez, gerou uma globalização do ressentimento e da vingança, origem de outro terrível medo: a certeza de que não há para onde fugir ou se esconder. E mesmo que alguns acreditem que a resposta para essa problemática seja a construção de muros cada vez mais altos, nesse mundo da “modernidade líquida” os perigos e os medos acabam também se tornando líquidos e até mesmo gasosos, não existindo paredes suficientemente altas para contê-los.

Desse modo, para Bauman, boa parte dos medos que hoje enfrentamos tem como causa a perversidade humana. Em outros termos, o que o ser humano mais teme é o próprio ser humano. E como esse medo se propaga? Basicamente por meio da suspeita na existência de uma motivação maléfica de certos homens e mulheres ou de determinados grupos ou categorias de homens ou mulheres. Como consequência, não só temos dificuldade de confiar na dedicação e constância de nossos companheiros humanos, como somos incapazes de tornar nossos relacionamentos mais sólidos, duradouros e dignos de confiança.

Portanto, segundo Bauman, existem razões internas e externas para que estejamos sempre com medo. As externas são bem conhecidas: violência, falta de segurança, redução da confiança naqueles que foram escolhidos para gerir os destinos de nosso país, estado ou cidade. Contudo, o sociólogo polonês também deixa claro que muitos de nossos mais profundos medos têm relação com sentimentos egoístas presentes nos outros e em nós mesmos. Dessa forma, é muito difícil não nos sentirmos vulneráveis quando não podemos esperar do vizinho compaixão e ajuda desinteressadas, pois foram aconselhados e ensinados a não oferecer nada que pudesse deixá-los expostos e ainda mais indefesos.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutora em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

Em tempos sombrios, em meio a uma pandemia provocada por um vírus do qual pouco sabemos, o medo é, como disse Bauman, essa incerteza, mesclada de desconhecimento, que nos impulsiona a ações, muitas vezes, defensivas que nos fazem esquecer a importância da solidariedade e do auxílio mútuo. Para quem acompanha séries e filmes cuja a temática é o apocalipse, já deve ter percebido que os heróis e as heroínas só mantêm o medo (o próprio e de seus companheiros) sob controle quando conseguem que o grupo ao qual estão unidos colabore e se entenda. Foi essa capacidade de cooperação que tornou o ser humano o “rei” do planeta e será a falta dela que transformará tudo o que até agora foi conquistado em cinzas.

Portanto, em momentos difíceis, não podemos deixar nas mãos do “destino” o futuro da sociedade, pois como explica Bauman, ele sempre representou a ignorância e a incapacidade humana de conduzir suas ações. Não deixemos que forças a serviço de interesses escusos nos controlem e ditem nosso comportamento; cuidemos de nós, mas também cuidemos do outro, aquele que está logo ali, mesmo que não possamos vê-lo. Centremos nossa energia em velar, orientar, acalmar e proteger, exijamos de nós o que exigimos com veemência do vizinho. E, finalmente, não tenhamos medo em reduzir o ritmo frenético de nossas vidas, aproveitemos esse momento para refletir sobre o que queremos para o mundo e, consequentemente, para nós e aqueles que amamos.

[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

[2] BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

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