VOCÊ NÃO É O UMBIGO DO MUNDO
Margarete Hülsendeger
Pensamos que sabemos muito, mesmo quando individualmente sabemos muito pouco, porque tratamos o conhecimento dos outros como se fosse nosso.
Yuval Noah Harari
Quando em 2018 foi publicado o terceiro livro de Yuval Noah Harari, 21 lições para o século 21[1], a gripe aviária, de 2005, provocada pelo vírus H5N1 era apenas um eco do passado e a gripe suína, de 2009, gerada por outro vírus influenza H1N1 já estava caindo no esquecimento mesmo tendo assustado meio planeta. Portanto, não é de estranhar que o autor, apesar de seus muito alertas, não previsse o aparecimento de outro vírus mortal (Covid-19) apenas um ano depois da publicação de seu livro. Um vírus que é uma mutação dos outros vírus citados e sobre o qual pouco se sabe, a não ser que se espalha mais rápido do que seus antecessores. Muito mais rápido!
De qualquer modo, mesmo que a palavra “pandemia” não apareça em seu livro e que ele tema mais os desenvolvimentos que estão ocorrendo na tecnologia, em especial na inteligência artificial, o fato é que sua lição 12 refere-se a algo, aparentemente, próprio da natureza humana: acreditar que é o centro do mundo. Como Harari é um historiador, seu foco está em demonstrar como, ao longo do tempo, diferentes culturas acreditaram que sua contribuição à humanidade foi a mais importante e decisiva entre todas as outras. Assim, ele escreve sobre os gregos, os chineses, os hindus, os muçulmanos, os europeus, os astecas e muitos outros, demonstrando que, no decorrer da história, alguns povos chegaram a ponto de “imaginar que suas instituições políticas e práticas religiosas eram essenciais para as próprias leis da física”.
Utilizando, inclusive, seu “próprio povo” para ilustrar o que chamou de “egotismo crasso”, Harari diz que os judeus também pensam que são a coisa mais importante do mundo. Segundo ele, pensar assim é como creditar à mãe de Freud toda a fama pelas conquistas do austríaco na área da psicanálise. O judaísmo desempenhou, escreve o historiador, “um papel modesto nos anais da nossa história”, pois ao contrário de religiões universais – cristianismo, islamismo e budismo – ele “sempre foi um credo tribal”. Por isso, quando se pensa na mãe de Freud, um eufemismo utilizado pelo autor para se referir ao judaísmo, não se pode negar sua influência, mas ninguém espera, ao ler a história do Ocidente moderno, que haja um capítulo inteiro sobre a ela.
Nesse ponto você deve estar pensando: qual a relação entre essas ideias e a pandemia do Covid-19? A resposta está no título dessa lição 12: humildade.
Vivemos um tempo no qual precisamos ter consciência de algumas coisas fundamentais:
1ª não somos a “última bolachinha do pacote”, o “pacote” da vida é diversificado, com “bolachinhas” de todos os sabores e para todos os gostos;
2ª existem outras pessoas se não iguais, quem sabe, mais importantes e essenciais do que você ou eu. Por favor, retorne ao primeiro item;
3ª nossas crenças não são melhores ou piores que aquelas professadas pelos nossos vizinhos. Esse erro foi cometido tantas vezes por diferentes povos em diferentes épocas que a essa altura a lição já deveria ter sido aprendida, mas parece ainda termos um longo caminho pela frente no quesito aprendizagem;
4ª se hoje somos capazes de ajudar, amanhã, talvez, seja a nossa hora de pedir ajuda. Portanto, não podemos nos dar ao luxo de virar o rosto e fingir que nada está acontecendo. É preciso colocar em prática uma palavra que, pelo visto, foi esquecida na rotina frenética de nosso dia-a-dia, solidariedade;
5ª de nada adiante bater no peito e se dizer religioso, acreditar em um Deus de misericórdia e bondade, se mais tarde você vai usar essa crença para ser prepotente com seus irmãos e, finalmente,
6ª nenhum de nós é dono da verdade, principalmente, porque não existe uma única verdade. Logo, deixemos nossa arrogância de lado e demonstremos um pouco mais de humildade frente aos desafios que a vida está colocando no nosso caminho. Novamente, por favor, retorne ao primeiro item.
A lista poderia seguir um pouco mais, mas acredito que esses seis itens são suficientes para entender que agora tudo depende de nós, ou seja, da nossa atitude diante desse “inimigo” invisível chamado Covid-19. Agora é o momento de deixarmos de lado nosso individualismo virulento, nossas necessidades nem tão básicas, nossas “verdades”, nossas “vontades”. Se em 2005 ou em 2009 tivéssemos dado a devida atenção ao que a natureza estava querendo nos dizer, talvez, só talvez, não estivéssemos hoje tão aterrorizados pelo que está acontecendo à nossa volta. Não podemos continuar ignorando os sinais, nos negando a ouvir e, principalmente, a agir. Precisamos, com urgência, deixar de pensar que somos o umbigo do mundo. Nós não somos e o Covid-19 está nos provando isso.
[1] HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das letras, 2018.
