Cultura literatura Livros Margarete Hülsendeger Resenha

Lições de História III

LIÇÕES DE HISTÓRIA III

Margarete Hülsendeger

 

[…] o modo como aceitamos a representação do mundo real pouco difere do modo como aceitamos a representação de mundos ficcionais.

Umberto Eco

 

Segundo a revista El País[1], o livro Sapiens: uma breve história da humanidade[2] foi traduzido, até o momento, para 45 idiomas, tornando o historiador israelense Yuval Noah Harari, uma espécie de pop star da contemporaneidade. A leitura de seus livros foi recomendada por personalidades como Bill Gates, Mark Zuckerberg e Barack Obama, e líderes políticos como Angela Merkel e Emmanuel Macron. A inspiração para escrever esse livro surgiu, conforme entrevista dada a El País, de um “curso introdutório sobre história mundial que ofereceu porque seus colegas mais veteranos não aceitaram a incumbência”.

Independentemente do como e do porquê do surgimento de Sapiens, o fato é que essa obra abre um espaço importante para que o leitor interessado tome contato com uma série de temas que vão desde a origem desse “animal insignificante”, chamado Homo Sapiens, até questões relacionadas com a busca da felicidade. Desse espectro tão amplo de assuntos, escolhi abordar, neste texto, alguns aspectos do que Harari denominou de “revolução cognitiva”, ou seja, o período (70.000 a 30.000 anos) no qual novas maneiras de pensar e de se comunicar apareceram.

De acordo com o autor, uma das teorias sobre a evolução da nossa linguagem diz que ela evoluiu como uma “forma de fofoca” ou um “meio de partilhar informações sobre o mundo” (p. 31). Desse modo, em uma determinada época, homens e mulheres começaram a cooperar trocando informações não apenas sobre comida ou possíveis predadores, mas também sobre as circunstâncias da sua vida de relação: quem estava dormindo com quem, quem era honesto e quem era traiçoeiro. Mesmo que a validade dessa teoria ainda está para ser confirmada, o incrível, segundo Harari, é que essa capacidade de comunicação não estava restrita a transmissão de notícias sobre coisas que já existiam; na verdade, o homem era também capaz de compartilhar informações sobre eventos inexistentes: “até onde sabemos, só os sapiens podem falar sobre tipos e mais tipos de entidades que nunca viram, tocaram ou cheiraram” (p. 32). O resultado é que a competência de falar sobre ficções tornou-se o traço mais marcante da linguagem dos seres humanos.

Dessa forma, são as ficções que permitiram, e ainda permitem, ao homem trabalhar ou colaborar coletivamente. Qualquer tipo de cooperação humana em grande escala estabelece-se sobre mitos comuns que só existem na mente coletiva das pessoas. Harari, de maneira didática, dá vários exemplos: (1) os católicos ao acreditarem que Deus se fez carne podem se reunir para construir grandes catedrais ou irem juntos a uma cruzada; (2) dois sérvios que não se conhecem podem arriscar suas vidas em nome de uma coisa chamada “nação sérvia”; (3) dois advogados podem combinar seus esforços para defender um estranho porque acreditam na existência de leis e das noções de justiça. No entanto, apesar da força dessas ficções, o autor insiste que elas não existem fora da mente humana: “não há deuses no universo, nem nações, nem dinheiro, nem direitos humanos, nem leis, nem justiça fora da imaginação coletiva dos seres humanos” (p. 36).

Harari também deixa claro que o poder das ficções só se manifesta quando elas conseguem convencer a todos de sua importância. Para ele, boa parte de nossa história gira em torno desse problema: “como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias específicas sobre deuses, ou nações, ou empresas de responsabilidade limitada?” (p. 40). Logo, não basta contar ou narrar, é imprescindível persuadir um grupo significativo de pessoas para que uma ficção se torne realidade. Quando isso acontece não estaremos diante de uma mentira, pois, diferente desta, uma “realidade imaginada” é algo no qual todos creem e enquanto essa crença persistir, ela exercerá uma enorme influência no mundo. A consequência direta desse processo é o fato de os sapiens terem sempre vivido uma realidade dual: a objetiva e a imaginada. Se a primeira tem relação com aquilo que somos capazes de ver, ouvir e tocar, a segunda está feita de abstrações compartilhadas.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutora em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

O comércio é um exemplo da força que essas ficções podem exercer. Conforme Harari, somente os sapiens dedicam-se ao comércio e todas as redes comerciais baseiam-se em ficções. A moeda – não importa se são conchas, metal ou papel –, assim como as instituições bancárias, são ficções criadas a partir da confiança que elas despertam naqueles que as utilizam. Daí a insegurança generalizada quando uma moeda é desvalorizada ou um banco é fechado. A confiança estabelecida entre os membros que participam dessas redes se debilita, enfraquecendo a autoridade dessas ficções o que, consequentemente, pode provocar a desestabilização de uma sociedade.

A variedade de “realidades imaginadas” criadas pelos seres humanos, combinada com a diversidade de padrões de comportamento resultante são, para Harari, os principais componentes do que chamamos de “cultura”. A partir do momento que as culturas apareceram, elas nunca pararam de se desenvolver e mudar, dando origem ao que hoje denominamos “história”. Portanto, a “revolução cognitiva” é aquele ponto no qual “a história declarou independência da biologia” (p. 46), ou seja, não somos mais impulsionados por imperativos biológicos, mas por narrativas históricas. Assim, para compreender a Revolução Francesa não basta recorrer a explicações de ordem biológica (genes, hormônios), agora, é preciso levar em consideração ideias, imagens e fantasias (p. 46).

Com esses conceitos, Harari vai nos mostrando como o sapiens foi, gradualmente, se separando de suas necessidades biológicas para graças a sua habilidade de inventar ficções, criar “jogos” cada vez mais complicados. Entre esses inúmeros “jogos” está o ato de ler, ou seja, a capacidade de mergulhar em um mundo que existe apenas em uma folha de papel. Como explica Umberto Eco[3], o leitor ao “assinar” uma espécie de “contrato” aceita “suspender a descrença”, de tal modo que, como ocorre nas “realidades imaginadas” de Harari, no tempo da leitura de uma obra ficcional o leitor acredita que o “que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso pensa que o escritor está contando mentiras” (p.81).

É interessante a ideia de vivermos mergulhados em ficções e é ainda mais curioso pensar que ao lermos estamos mergulhados em uma segunda ficção. A impressão é a de sermos eternos sonhadores, sonhando com uma vida que, aparentemente, só existe na nossa imaginação. Nesse sentido, a leitura de Sapiens: uma breve história da humanidade é uma experiência estimulante, pois descobrimos que na nossa realidade, assim como em um romance, estamos fechados dentro das fronteiras de um mundo que, de uma maneira ou de outra, precisamos levar a sério.

[1] Disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/20/eps/1534781175_639404.html. Acesso: 09 dez 2019.

[2] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 30. Ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, 459 páginas.

[3] UMBERTO, Eco. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Deixe um comentário