Por Telma Mondoni
Meados da década de 1960. As luzes das ruas, os letreiros de néon, os cinemas da São João e Paissandu, as enormes vitrines do Mappin e o cheirinho da Sears deslumbravam a menina nascida na pequena Teodoro Sampaio, no extremo Oeste do estado.
Também enxergava magia e poesia naquele parque enorme – o Ibirapuera- onde fazia piqueniques, corria, brincava, cansava. Mas ainda sobrava fôlego para convencer os tios a esticar até o mirante do aeroporto de Congonhas, onde observar pousos e decolagens dos Electras da Varig e da Vasp era praticamente uma obra de ficção comparada à simplicidade e à vida rural de sua terra natal.
Ir à feira-livre com a avó e sentir o cheirinho das maçãs, parar para ver peras equilibrando-se como uma pirâmide humana, bancas com uvas itália enormes, biscoitinhos e docinhos dos mais variados sabores e formatos da barraca do japonês facilmente faziam os olhinhos brilharem e a boca encher de água. Afinal, as frutas lá de casa eram bananas, mangas, mamãos, pinhas, goiabas, jacas; todas plantadas no quintal. Também, sazonalmente, podia comer doces e enormes jabuticabas colhidas na mata da Serra do Diabo pelo pai e tio. Laranjeiras eram proibidas na cidade. A vigilância sanitária as destruía devido ao cancro cítrico.
São Paulo demorava chegar. Além da ansiedade alimentada durante o ano inteiro, somente nas férias escolares de verão, e após um longo trajeto pelos trilhos da Sorocabana, conseguia desembarcar na estação Júlio Prestes.
Primeiro destino: casa da vovó Odete, na Vila Prudente. Os dias iniciavam-se com uma importante disputa: a vovó tinha de decidir qual dos quatro netos (meus três irmãos e eu) iria à Cepam, tradicional padaria do bairro, para comprar bengalas quentinhas e lógico, ter direito ao troco. Cheiros e sons ainda permeiam as doces lembranças de uma São Paulo na qual até mesmo uma criança de um distante e pacato lugarejo podia atravessar sozinha a rua dos Cliclames.
Segundo destino: casa dos padrinhos da irmã, em Higienópolis, do qual os dois irmãos habitualmente abriam mão. Afinal, os primos da Vila Prudente possuíam a mesma faixa etária e tinham mais liberdade para empinar pipas nas ruas (conhecidas como papagaios em Teodoro Sampaio) e jogar bola de gude (biroca para os teodorenses) nos quintais dos tios e vizinhos. Em Higienópolis, havia certo confinamento. Os edifícios – apesar de contar com amplos apartamentos – não possuíam áreas de lazer. Os “primos” de Higienópolis eram mais jovens, com idades equivalentes à minha e à de minha irmã. Para nós, e os sete “primos” da rua Albuquerque Lins, a diversão era a praça Buenos Aires. Neste caso, a lembrança degustiva remete-se ao suco de uva do piso térreo do único shopping center de São Paulo à época: o Iguatemi.
Chegaram os anos 1970, e com eles a adolescência. Meus pais resolveram trocar Teodoro Sampaio por São Paulo. O sonho de Nair era que todos os filhos fizessem faculdade e seguissem suas vocações profissionais. Seu poder de observação sempre foi aguçado, até hoje Teodoro não possui faculdade.
Em 1983, meu pai, Carmo, meus três irmãos e eu – repletos de emoção e orgulho – comemoramos a colação de grau de minha mãe no Grande Plenário do Anhembi. Ela, exemplo inigualável de perseverança e de ética, superou todos os obstáculos de uma periferia paulistana violenta e extremamente carente de infra-estrutura urbana, além dos percalços financeiros da família. Bravamente valeu-se da contraditória generosidade de São Paulo e concluiu o tão sonhado curso de Direito. Na seqüência, também obteve o registro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Ao contrário da persistente iluminação noturna de São Paulo, que tanto me fascinava quando criança, em Teodoro as luzes eram apagadas às 23h, quando o gerador de energia da cidade era desligado. A partir desse horário, minha mãe acendia uma vela e continuava a leitura de romances, biografias etc.
Todas as manhãs, ela lia (com um dia de atraso, devido à distância e à logística precária da época) um dos mais tradicionais jornais de São Paulo. Sua platéia era formada por meu pai e seus amigos. Logo após, procediam à discussão dos temas nacionais mais relevantes, dentro daquilo que o regime militar permitia. Às vezes, lógico, extrapolavam cautelosamente.
Essa atmosfera de leituras, ideais, liberdade de expressão, perseverança, solidariedade impregnou-me. E São Paulo ofereceu-me as oportunidades necessárias para trilhar os caminhos acadêmico e profissional que mais se identificavam com essa inconsciente herança da infância.
São Paulo imiscui-se descaradamente na minha história. Inclusive, oferecendo-me seus raros cartões postais como palco para momentos inesquecíveis. O primeiro beijo na boca, por exemplo, aconteceu num de seus locais mais emblemáticos: o Anhangabaú.
Em 1986, casei com alguém muito especial e tão apaixonado por São Paulo quanto eu. Atualmente, nossa filha mais velha cursa Medicina Veterinária e a mais nova Relações Internacionais.
A agitação da Sra. São Paulo me fascina tanto quanto a disposição de dona Nair. Elas não param. Ambas são sinônimos de vida. A primeira já chegou aos 454 anos de idade. A segunda aos 72, e não dá sinais de que pretende “pendurar as chuteiras”. Continua advogando, bordando e deleitando-se ao embalar a bisneta de dois anos de idade, paulistana como o pai, cantarolando Sampa; uma canção que relembra a condição de migrante àqueles cuja alma há muito já se “paulistanizou”.
Para mim, São Paulo é amor sublime e também bandido. Mesmo com todas as adversidades e o caos diário, é difícil imaginar-me respirando ares desprovidos de hidróxido de carbono e vivendo dias tediosos e iguais. São Paulo está na veia.
Telma Mondoni é jornalista