LIÇÕES DA HISTÓRIA I
Margarete Hülsendeger
A história fabrica estranhas figuras, resigna-se, com frequência, ao sentimentalismo e não despreza as simetrias da ficção, mesmo quando quer atribuir-se um sentido que por ela mesma não possui.
Javier Cercas[1]
Em 2011, um doutor em história pela Universidade de Oxford, especializado em história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, lançou, em Israel, um livro que se tornou em pouco tempo um best-seller internacional, tendo sido publicado, até o momento, em mais de quarenta países. O autor é o israelense Yuval Noah Harari e o best-seller é Sapiens: uma breve história da humanidade[2].
Inicialmente, a intenção era escrever uma resenha do livro, mas logo percebi que seria mais interessante e produtivo comentar em diferentes textos algumas das ideias que chamaram a minha atenção durante a leitura. O objetivo é despertar o interesse do leitor, convidando-o a ler obra, pois, como disse um comentarista do Financial times: “Este livro fascinante não pode ser resumido; você simplesmente terá de lê-lo”. Assim, meus textos (este e os próximos) serão uma espécie de “aperitivo” cujo propósito é abrir o “apetite” do leitor levando-o a querer saborear a “refeição” completa.
Neste primeiro texto vou comentar a seguinte afirmação de Harari: “Não existe justiça na história” (p. 141). Essa afirmativa, na verdade, é o título de um dos capítulos que compõem a segunda parte do livro, “A revolução agrícola”.
Com essa declaração, o autor coloca em destaque o que chamou de “ordem imaginada”, isto é, a crença em uma ordem específica não porque ela seja objetivamente certa, mas porque acreditar nela permite uma cooperação efetiva para forjar uma sociedade melhor. Segundo o historiador, a manutenção desse tipo de ordem exige um esforço continuo e obstinado, podendo, em muitos casos, derivar para a violência e a opressão. Portanto, o grande inconveniente em manter a “ordem imaginada”, por meio da selvageria, mesmo que institucionalizada, é a impossibilidade de sustentar, por muito tempo, um aparelho de repressão que está unido apenas pela força. É preciso, segundo Harari, que as pessoas acreditem realmente em “algo”, não importando se esse “algo” chama-se Deus, honra, pátria ou dinheiro.
Um exemplo de “ordem imaginada” é a ideia de que todos somos iguais, pois, de acordo com o autor, ela encontra-se entrelaçada com o conceito de criação. Desse modo, se alguém não acredita nos mitos cristãos sobre Deus, a origem do homem ou a existência das almas, não conseguirá aceitar essa imagem de igualdade, pois, biologicamente, a evolução baseia-se na diferença e não na paridade. Como resultado, a liberdade, assim como, a igualdade, os direitos e as sociedades anônimas, também são uma invenção que só existe na mente do homem.
Entretanto, de acordo com o autor, isso não quer dizer que as “ordens imaginadas” sejam conspirações malvadas ou ilusões inúteis; na realidade, elas foram/são a única forma encontrada para que um grande número de indivíduos consiga cooperar de maneira eficiente. E para que isso ocorra é necessário que as pessoas: (1º) nunca admitam que a ordem que rege as suas vidas é imaginada; (2º) acreditem que essa ordem faz parte do mundo material; (3º) concordem que ela dá forma aos nossos desejos; e (4º) aceitem sua qualidade intersubjetiva, ou seja, que seja capaz de conectar, simultaneamente, muitos indivíduos. Quando essas quatro condições são satisfeitas é muito difícil escapar dessa “ordem imaginada”, pois, como diz Harari, “quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos, na verdade, correndo para o pátio mais espaçoso de uma prisão maior” (p. 126).
Como esse conceito de “ordem imaginada” se relaciona com a afirmação, feita pelo autor, de que não existe justiça na história?
Conforme Harari, a rede de cooperação que essas “ordens imaginadas” originam não são neutras e nem justas. Elas são responsáveis pela divisão dos seres humanos em grupos artificiais, segundo uma determinada hierarquia. Por conta disso, existem os que ocupam os níveis superiores e aqueles que se encontram nos níveis inferiores; enquanto os primeiros usufruem de privilégios e poder, os segundos são discriminados e oprimidos. Como exemplo, o historiador utiliza a Declaração de Independência dos Estados Unidos que, apesar de proclamar que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis entre eles a vida, a liberdade e a busca da felicidade, criou uma hierarquia que considerava os índios e os negros inferiores ao homem branco e, consequentemente, sem os mesmos direitos.
Harari também explica que é uma “lei férrea da história que toda a hierarquia imaginada negue suas origens ficcionais e afirme ser natural e inevitável” (p. 142). Assim, não há melhor maneira de manter isolado qualquer grupo humano do que convencer o maior número possível de pessoas de que esses grupos, de alguma forma, contaminam a ordem “natural” da vida.
Devido as hierarquias criadas por essas “ordens imaginadas”, gera-se um círculo vicioso difícil de romper e que acaba se traduzindo em um sistema social rígido. Esse processo foi a causa dos preconceitos contra os negros, as mulheres, os homossexuais, os judeus e, atualmente, os muçulmanos. Preconceitos alimentados pela cultura e não pela biologia, porque enquanto a segunda tolera um espectro mais amplo de possibilidades, a primeira obriga as pessoas a realizar algumas dessas possibilidades ao mesmo tempo que proíbe outras. Dessa forma, ao longo da história, foi/é possível observar que a maioria das hierarquias socio-políticas não tem qualquer base biológica, sendo apenas o resultado da perpetuação de acontecimentos aleatórios sustentados por mitos capazes de gerar círculos viciosos que podem perdurar por séculos e até milênios.
Daí a razão para Harari dizer que a história não é justa. Com a passagem do tempo, muitas vezes, a discriminação injusta costuma piorar, e não melhorar. No cômputo final, as vítimas da história tendem a ser vitimadas mais de uma vez e “aqueles que a história privilegiou tendem a ser privilegiados novamente” (p.151). Contudo, o autor acredita na possibilidade da mudança, muitas vezes drástica, da história. Mudanças que podem provocar, em um primeiro momento, o questionamento dessas hierarquias imaginadas para, mais tarde, provocar a sua derrubada. Se esse processo vai durar anos, séculos ou milênios o único responsável é o próprio homem que é, sem dúvida nenhuma, seu mais terrível inimigo.
Como disse no início deste texto, em Sapiens encontraremos uma série de ideias e questionamentos que não podem ser resumidos em duas ou três páginas. Por isso, em “Lições de História” vou continuar trazendo mais alguns dos conceitos apresentados por Harari. No entanto, enquanto o próximo texto não chega, comece a leitura desse livro que, além de colocar em dúvida ideias preconcebidas a respeito do mundo no qual vivemos, agrega informações que estimulam nossa capacidade de avaliar e criticar a realidade que nos cerca. Em tempos escuros é sempre importante ter à mão uma obra que não tem medo de contestar nossos mais apreciados mitos.
[1] CERCAS, Javier. Anatomía de un instante. Barcelona: Penguin Random House, 2013. [Tradução minha]
[2] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 30. Ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017, 459 páginas.