comportamento comportamentos Crônicas Margarete Hülsendeger

O inventário de um fracassado

O INVENTÁRIO DE UM FRACASSADO

Margarete Hülsendeger

Porque o momento em que se é mais culpado, não é necessariamente aquele em que se levanta a arma para matar alguém. A culpa existe antes, a culpa reside na intenção[1].

Segundo o Dicionário Houaiss, “inventário”, no direito comercial, significa “descrição e avaliação de todos os bens, ativos e passivos, de uma sociedade comercial”, mas também pode significar “levantamento minucioso dos elementos de um todo; rol, lista, relação”. Em um nível mais pessoal pode igualmente representar aquele momento no qual paramos para refletir sobre o que fizemos (de bom ou ruim) ao longo de nossas vidas. De qualquer maneira, não importa a forma como o encaramos, inventariar é passar a limpo, enumerando tanto os projetos que deram certo, como aqueles que fracassaram estrepitosamente. E não há nada pior do que estarmos diante de um enorme, de um descomunal, fracasso que precisamos inventariar.

O primeiro passo, no entanto, é aceitar o fracasso. Uma aceitação que para ocorrer precisa que o potencial fracassado atravesse cinco dolorosos passos: negação, raiva, barganha, impotência e aceitação.

A negação é marcada pela dificuldade em acreditar que o fato realmente aconteceu. Aquele que nega o fracasso procura estar sempre cercado de pessoas que reforçam a ideia de que tudo está bem, ou melhor, nada nunca esteve tão bem como agora. Durante a negação o futuro é visto através de lentes cor de rosa e o fracassado acredita firmemente que tudo está sendo feito pelo bem de todos. Os discordantes são silenciados, ouvindo-se apenas os gritos histéricos daqueles que se recusam a admitir que o fracasso está logo ali, ao virar da esquina.

Ao perceber que o fato realmente aconteceu, não existindo, portanto, nada que possa ser feito, é comum o fracassado sentir uma revolta muito grande. Nesse momento, o sentimento dominante é a raiva, uma raiva que precisa extravasar, mesmo que seja ofendendo, agredindo e até difamando. Os discordantes, depois de silenciados, são também afastados, pois o fracassado não quer ser lembrado de suas más decisões, pois, isso significaria enfrentar seus próprios erros. A raiva o faz agir de forma irracional, o faz dizer idiotices, com o único propósito de manter a ilusão de que ele está certo e tem ainda algum tipo de poder. É um período difícil sendo, muitas vezes, necessário interromper o inventário para não despertar a raiva e o ódio do fracassado.

Depois da raiva, vem a negociação ou a barganha. Nessa fase o fracassado procura imaginar possíveis soluções, fazendo todo o tipo de “acordos”, não importando se isso significa vender a alma ao diabo. O importante é salvar-se custe o que custar, conquistando (ou comprando) o apoio de qualquer um que esteja disposto a dar uma chance para que ele escape ileso. É a época dos discursos, das promessas que ele jamais poderá cumprir, do estreitamento de laços com indivíduos que mais tarde poderão colocá-lo em uma situação ainda pior. O fracassado não se importa em usar todo e qualquer tipo de recurso e artifício para escapar do destino, ou seja, o fiasco completo e absoluto.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

No entanto, quando o fracassado percebe que a negociação não está dando os resultados esperados ele pode ver-se inundado por uma sensação aterradora de impotência. Observar seus sonhos (ou delírios) serem, gradualmente, derrubados não é fácil, pois até mesmo os apoiadores começam a se afastar, porque ninguém quer ficar perto de um prédio que está prestes a cair. Nesse ponto, o fracassado encolhe-se sobre si mesmo e, como um cão ferido, lambe suas feridas enquanto rosna para todos os que tentam se aproximar dele. É uma fase muita difícil, porque tudo pode acontecer, desde o fechamento a qualquer possibilidade de diálogo até investidas brutais contra aqueles que ousam questionar suas decisões. O fracassado é um animal encurralado, capaz de cometer as maiores loucuras, um perigo real para todos.

E, finalmente, chega-se ao estágio final: a aceitação do fracasso. Nessa fase o fracassado deve conseguir ter uma visão mais realista da situação, passando a aceitar a derrota e as suas consequências. Em princípio, esse reconhecimento deve chegar para todos, abrindo-se espaço para um período de maior serenidade. No entanto, pesquisas científicas comprovam que existem indivíduos incapazes de chegar até essa etapa, alguns perdendo-se no estágio da raiva, enquanto outros morrem durante suas inumeráveis negociações. Portanto, esse não é um processo que atinge a todos da mesma forma; há casos registrados de suicídios, assim como de desaparecimentos misteriosos.

De qualquer modo, mesmo o fracassado reconhecendo a derrota de seu projeto, o fato é que serão seus herdeiros que terão de lidar com as consequências de seus atos. Daí a necessidade de inventariar os insucessos, os fiascos, os constrangimentos, procurando, quem sabe, aprender estratégias que mantenham potenciais fracassados longe de posições de poder. Não é uma tarefa simples e os resultados podem demorar a aparecer, mas não convém desistir. Do mesmo modo, não se deve esquecer que por detrás de todo o fracassado existe uma legião de mal-intencionados prontos para colocar em funcionamento planos cujo único objetivo é lucrar a partir da ignorância que apenas um fracassado é capaz de despertar. E como a ignorância anda de mãos dadas com a cegueira é preciso manter os olhos bem abertos para qualquer fracassado que se aproxime de você.

[1] MÁRAI, Sandor. As velas ardem até o fim. Tradução Maria Magdolna Demeter. Alfragide/Portugal: Dom Quixote, 1999. (E-book), p. 86.b

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