MÁQUINAS COMO EU
Uma ficção sobre o passado, o presente e o futuro do homem
Margarete Hülsendeger
As implicações das máquinas inteligentes são tão imensas que não temos ideia do que você – quer dizer, a civilização – pôs em marcha. Um fator de ansiedade é que será um choque e um insulto conviver com entidades que são mais inteligentes que você.
Ian McEwan
E se a Argentina tivesse ganho a Guerra das Malvinas? E se o atentado contra o presidente americano John F. Kennedy tivesse fracassado? E se o genial matemático Alan Turing não tivesse se suicidado? Com esses e outros “e se” o escritor britânico Ian McEwan estrutura a narrativa de seu mais novo livro Máquinas como eu: e gente como vocês (2019)[1]. Um livro instigante porque, apesar da história ocorrer no início da década de 1980, os temas tratados se ajustam perfeitamente aos tempos que hoje vivemos e os que, em breve, estaremos vivendo. Nesse livro, McEwan novamente demonstra sua capacidade de criar um universo no qual a realidade apresenta-se na sua forma mais dura, sem quaisquer tipos de disfarces ou ilusões.
O estilo do escritor britânico é pautado pela presença do macabro com algumas pitadas de humor negro. Além disso, ele também sabe ser provocador e mordaz, com uma escrita fascinante, repleta de imagens que são, simultaneamente, assustadoras e sensuais. Por conta dessas características, que marcam a sua trajetória como escritor, ele acabou recebendo o apelido de “Ian Macabro”. No entanto, ele é um dos escritores vivos com mais livros transformados em filmes: Jardim de cimento (1978), Amor sem fim (1997), Na praia (2007), Balada de Adam Henry (2014) e, o mais famoso, Reparação (2001)[2], estrelado, em 2007, por James McAvoy e Keira Knightley[3].
Nos últimos anos, o traço predominante de sua atividade intelectual tem sido a defesa da racionalidade em oposição ao fundamentalismo, não importando a sua origem. Por essa razão, suas histórias dramatizam a hostilidade enfrentada pelos valores do Iluminismo, com heróis extremamente racionais sendo confrontados por pessoas e ideias perigosas. Nesse sentido, quando se trata da obra de McEwan a palavra “herói” precisa ser relativizada porque não encontraremos em seus protagonistas nenhum dos traços que caracterizam o herói romântico. Ao contrário. Os heróis de McEwan, em geral, são homens comuns, expostos aos mesmos dilemas e conflitos aos quais você e eu estamos sujeitos. Portanto, não é de estranhar que Charles Friend, o personagem principal de Máquinas como eu, encarne esse mesmo tipo de herói contemporâneo, um ser meio à deriva, vivendo um dia de cada vez, sem grandes ambições ou projetos.
Charles é um homem de 31 anos, sobrevivendo do que consegue ganhar em transações financeiras realizadas pela internet, sempre envolvido em “esquemas mirabolantes, artimanhas semilegais, atalhos espertos”. Um desses esquemas foi gastar a herança da mãe na compra de um dos doze exemplares do que seria um humano artificial, o robô Adão. Esse artefato de alta tecnologia se tornaria o centro da atenção, não só de Charles, mas também de sua vizinha e namorada Miranda. Contudo, Adão logo demonstraria ser algo mais do que um “sofisticado brinquedo”, um computador que anda e fala. Para surpresa de seus “pais”, Charles e Miranda, ele provaria ser capaz de desenvolver emoções (apaixonando-se por Miranda), de ser criativo (escrevendo breves poemas de amor) e de possuir um forte “instinto” de autopreservação (quebraria o pulso de Charles quando este tentasse desligá-lo). Todas essas assombrosas características de Adão levariam Charles a questionar se não teria embarcado em mais uma de suas aventuras extravagantes e imprudentes.
Em meio às confusões que ocorrem durante o período de adaptação de Adão a sua nova “vida”, McEwan nos apresenta uma sociedade no início dos anos 1980, na qual a ciência da computação sofreu um salto exponencial. Nessa época o “futuro estava sempre chegando”, com “novos e maravilhosos brinquedinhos” enferrujando “antes que pudéssemos levá-los para casa”. Um mundo possível apenas porque o matemático Alan Turing escolheu a prisão e não o castramento químico. Turing, na ficção de McEwan, está muito vivo e é considerado um herói de guerra (decifrou os códigos germânicos na II Guerra Mundial) e o maior gênio da era digital. Desse modo, reescrevendo a história o autor nos mostra o que teria acontecido se esse matemático, ao invés de ter optado pelo suicídio na década 1950, tivesse escolhido ir para a prisão, assumindo sua homossexualidade. Nesse período de isolamento forçado, Turing teria trabalhado, sem interrupções em suas ideias sobre redes neurais artificiais que dariam o impulso para o surgimento de “máquinas pensantes” cada vez mais inteligentes.
No entanto, McEwan deixa claro que avanços tecnológicos não eliminam os problemas. Ele nos mostra uma Inglaterra (mas poderia ser qualquer outro país) convulsionada por ter perdido a Guerra das Malvinas, com a Primeira Ministra britânica na época, Margaret Thatcher (1925-2013), lutando para se manter no poder, ao mesmo tempo que tenta controlar (sem sucesso) movimentos populares que exigem mais empregos e melhores condições de vida. Portanto, com esse quadro, não deveria espantar que mesmo uma máquina espetacular como Adão não conseguisse se adaptar à forma de ser do homem. Uma inadequação colocada em evidência quando se descobre que os robôs vendidos estão causando danos a si mesmos ou, na linguagem humana, estão tentando se matar.
Aparentemente, ao não conseguirem entender o homem, seus programas de aprendizado tornam-se incapazes de se ajustar, gerando reações conflitantes, muito parecidas ao que os seres humanos chamam de desespero ou angústia existencial. Como explica Turing, “se não podemos conhecer nossas mentes, como seríamos capazes de planejar a deles e esperar que fossem felizes convivendo conosco?”. Porém, apesar de ver-se envolvido em uma rede de mentiras criada por seus “pais”, o Adão de Charles e Miranda surpreende e suas ações acabam provocando uma reação em cadeia que vai colocar em destaque as falhas morais e éticas de Charles e Miranda. E, em uma reviravolta típica de McEwan, farsas são desmontadas, crimes são revelados e a natureza humana é exposta em toda a sua “glória”. O ponto de McEwan é demonstrar que todos temos dentro de nós não só um mentiroso, como um assassino, basta estarmos diante de uma situação que nos force a isso.
Quem lê pela primeira vez um livro de Ian McEwan fica com a sensação de que está diante de um pessimista, ou seja, um autor que vê e julga as coisas sempre pelo lado mais desfavorável. No entanto, se avançamos na leitura de sua obra percebemos que McEwan não é um pessimista, mas um realista; um escritor que, ao representar o mundo, procura fazê-lo com a maior objetividade e legitimidade possíveis. Esse manejo da realidade faz com que sua escrita seja precisa, racional e extremamente controlada. Contudo, esse estilo não retira do autor britânico a capacidade de conseguir tocar em nossos mais secretos e profundos medos. Máquinas como eu é um exemplo desse trabalho. Se você ainda não deu uma chance a “Ian Macabro”, comece pela leitura desse seu último livro. Vale a pena!
[1] MCEWAN, Ian. Máquinas como eu: e gente como vocês. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 (Edição eletrônica).
[2] Em 2008, Reparação recebeu o Globo de ouro como melhor filme drama, ganhando também o Oscar de melhor trilha sonora.
[3] No Brasil o filme foi chamado de “Desejo e reparação”.
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