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Reflexões sobre o meio ambiente: um caso político

  Gerd Bornheim

As manifestações a favor do meio ambiente vêm assumindo as mais diversas modalidades. Elas invadem a pesquisa de campo e a análise laboratorial, fazem-se presentes em associações de bairro e propiciam até mesmo a formação de partidos políticos específicos. É que o chamado movimento ecológico se impõe, e cada vez mais, como um problema que se estende a ponto de atingir as próprias raízes do homem e de sua sobrevivência. E tudo é medido pela gravidade crescente das consequências daquilo que o homem faz com a natureza e consigo mesmo: amiúde, o resultado chega a tocar a calamidade.

Tentemos aqui fazer algumas considerações em sentido oposto ao usual, considerando o debate ecológico não em função de seus resultados, mas sim como um problema a merecer a meditação filosófica — a filosofia, ensinava Hegel, vê o mundo às avessas, e isso para tentar elucidá-lo numa nova perspectiva.

É bem verdade que esse tipo de elucidação, quando se constata a impossibilidade de resolver as questões, pode concluir por mostrar certas contradições dificilmente suportáveis — o que, longe de abolir a meditação e a consciência do problema, deve torná-las ainda mais aguçadas e responsáveis. De fato, não caberia restringir a questão ecológica aos limites de uma questão entre outras, ou de pretender esgotá-la em uma particularidade que, para subsistir, dependesse apenas de certa dose de teimosia.

O problema, de resto, sequer é de hoje. Suas raízes arrancam de lugares mais remotos do que deixa suspeitar a súbita urgência da catástrofe já armada; são lugares anteriores a possíveis cálculos bem premeditados ou a simples ponderações de que talvez, algum dia, venha a ser obrigada a defrontar-se com as consequências de atitudes que não poderiam deixar de apresentar uma larga margem de insensatez. Na origem, nada disso: nenhuma malícia, nenhum pressentimento, nem o menor traço de um presumível ainda que remoto desvio.

Na origem — o quê? O silêncio. O silêncio de um cálculo que se aprazia em sua própria satisfação, numa completude que se pretendia simplesmente neutra e objetiva, correta e mesmo exatamente triunfal. Ainda estamos distantes do surto da consciência histórica, e àquele aplicado pensamento sequer competia  desconfiar da existência do intrincado jogo de compromissos que trazia em seu bojo e de que tudo já se processava dentro do horizonte da maior revolução de todos os tempos — a do estabelecimento do homem nesta Terra.

E, sem dúvida, é bem disso que se trata também na ecologia. Apenas um detalhe: é que o caminho terminou se revelando muito mais complicado e mais cheio de contradições do que seria de desejar. Entende-se, por aí, que a ecologia se nutra de um problema, que os dados tenham de ser lançados e que não há como voltar atrás.

O Dedo na Ferida
Tentemos delinear algumas idéias sobre o tema. O pano de fundo da questão deve ser visto na análise do conceito de natureza por meio de sua evolução histórica. Quando Marx, por exemplo, insiste em afirmar que já não existia uma natureza em si, que tudo já foi trabalhado, transformado, mapeado pelo homem, ele mete o dedo no cerne do problema.

Realmente, no correr da alentada e longa evolução, a natureza se fez cada vez menos o pólo antitético do mundo humano e da cultura, e tudo se passa como se ela pudesse ser integralmente assimilada por essa cultura, no sentido de que tudo  é transposto ao plano da racionalidade prática e teorética. Em princípio, ao menos, é essa idéia que comanda a engenharia humana. De outro lado, entretanto,  a colocação de Marx desvia o olhar precisamente da grande contradição fundamental, que terminou por alicerçar o próprio surto do movimento ecologista. Senão vejamos.

Se adotássemos a inexorabilidade triunfalista da dialética hegeliana, a questão poderia ser dada por resolvida, ou, ao menos, em face da maturidade da contradição, logo topariam com a sua síntese conciliadora. Haveria, nesse caso, uma tese inicial: a natureza como um grande “em si”, um imenso palco sobre o qual tomaria assento a espécie humana, com toda a gama possível de comportamentos mais ou menos primitivos. Tudo isso acrescido de toda a permissividade extra-humana compatível com os grandes espetáculos, abrigando os deuses bons e os maus, mas oferecendo também a matéria prima para a construção das invariavelmente pequenas cidades: a natureza aqui funciona como algo de fundamentalmente inviolável, espécie de conceito limite, que nunca chega a ser realmente, em sua inteireza, para o homem.

Sabe-se que a primeira tentativa de pensar racionalmente a natureza, considerada de início como a totalidade de tudo o que existe, deveu-se aos filósofos pré-socráticos. Ora, o surto da racionalidade filosófica, a vontade de explicar criticamente, por meio de conceitos, o mundo que nos cerca, termina por revelar-se o ponto de partida de uma nova atitude, pela instauração de um comportamento que começa a abandonar os padrões de submissão a uma natureza dada, dominadora e inquestionável.

Além disso, já entre os gregos, a partir de Platão, encontramos também o começo decisivo de elaboração de certos pressupostos fundamentais para que se alcance entender o lento processo de superação daquela tese preambular.  De modo essencial, a contribuição platônica pode ser vista na vantagem que passa a ser emprestada pelo filosofo à dicotomia sujeito-objeto. É toda a questão da verdade que principia a transfigurar-se.

Esquematizando o tema, cabe dizer que, a partir do platonismo, o homem já não está mais estabelecido em uma verdade dada, independentemente de qualquer modalidade de ingerência do sujeito; antes, a verdade apresentava o caráter  de uma resposta, dada desde sempre, dotada da força do inquestionável.

Já os diálogos platônicos apresentam uma guinada decisiva nesse panorama, pois se, de um lado, a verdade continua apresentando, ainda que de uma forma nova, uma fundamentação divina, de outro  introduz-se o conceito de adequação, que faz com que o espaço da verdade se desenvolva agora na intimidade do comércio entre o sujeito e o objeto.

Intimidade essencial para o tema que nos está interessando aqui, pois essa presença do sujeito instaura um vagaroso mas incoercível  processo por meio do qual a verdade será sempre mais definida como o campo dominável construído — e mesmo criado — pelo homem. E é de dentro desse veio que se fez perceber a passagem da tese inaugural para a sua superação.

A Visão Cartesiana
A grande esquina, todavia, situa-se no século 17, e seu principal personagem é sem dúvida Descartes. É claro que para ele e para os seus seguidores, toda a parafernália metafísica continua a ser invocada: idéias inatas, ocasionalismo divino, harmonia pré-estabelecida. O alcançamento da coisa, como em Platão, encontra a sua garantia última em algum tipo de passagem pelo reino divino; mas Deus já se faz muito mais distante, mais mecânico e artificial, mais exterior e rarefeito.

E realmente é a própria dicotomia sujeito-objeto que passa a desempenhar o papel principal. A evidência é subjetivada, desloca-se da coisa para a transparência das idéias claras e distintas, e, o que é mais importante, o objeto não é simplesmente o que se oferece à inspeção desprevenida do olhar: passa a ser o resultado de uma construção elaborada pelo sujeito e, por aí, é o sujeito que vem a ser a medida do objeto.

Melhor ainda: a coisa se transforma, após mais de dois mil anos de evolução metafísica, em objeto, e o objeto é o que se presta à construção, ao cálculo, ao que pode ser dominado pela razão porque é feito para ser dominado. Assim, o âmbito da verdade recolhe-se para a atividade interna da dicotomia sujeito-objeto, e entende-se então que surja, pela primeira vez, a idéia de que o conhecimento é uma forma de poder, de dominação. Com isso, estão lançadas as bases de toda a revolução tecnológica burguesa.

Onde está a contradição? Não se trata simplesmente da passagem da tese inicial para a uma antítese, ou de dizer tão-somente que aquilo que era uma natureza para si transforma-se agora em natureza para o homem. Sem dúvida, o que está em causa é a relação verificável entre o homem e a natureza. E não há exagero em afirmar que é apenas no correr dos tempos modernos que a natureza torna-se o motivo de uma invenção revolucionadora da própria maneira como o homem existe no mundo.

A questão toda se concentra, portanto, no modo como a natureza se faz presente para o homem; ou melhor: no modo como o homem torna a natureza presente. A contradição, entrementes, não tarda em surgir. É que aquele tornar presente a natureza se processa dentro de duas modalidades essenciais e, ao que tudo indica, inconciliável. Os dois perfis que souberam dar a essas duas modalidades a primeira e mais vigorosa expressão, são, evidentemente, Descartes e Rousseau.

A Natureza Instrumentalizada

Com Descartes, abrem-se as portas para que se aceda ao pensamento da natureza como totalmente instrumentalizada. E é isso que vai autorizar a ironia de Marx relativamente a uma natureza em estado virgem, ao asseverar que ela só existia em algumas ilhas corais australianas de descoberta recente.

Em princípio, tudo pode agora ser equacionado em termos de uma linguagem-cálculo, e tudo se passa como se as coisas e a linguagem devessem abdicar de seu avesso, de seu fundo de mistério, da dimensão de imponderabilidade que impediria, quiçá, sua subjugação pelos estatutos da subjetividade do sujeito cartesiano. Instauram-se, por esses caminhos, os fundamentos metafísicos que irão possibilitar, em nosso tempo, o objeto-vitrine (e a própria vitrine): o objeto deve esgotar-se em seu ser-visto, deve apresentar-se de tal maneira que ao primeiro lance do olhar se o domine em sua completude.

Já não se busca o conhecimento de qualquer coisa como a confusa imensidão das águas do mar, mas formalismo de um cálculo que reduz a composição da água a uma equação química de precisão matemática; que essa água nem mesmo exista, não interessa, pois é por esse caminho abstrato que se torna possível dominar as águas em todos os seus níveis e tudo pôr à disposição do homem — o cálculo só respeita a perfectibilidade de seu próprio processo. A teoria, como ensina a Escola de Frankfurt, torna-se operacional, e dá razão à tese de Heidegger, de que a técnica é a essência da ciência moderna.

Assim, a teoria deixa de ser um ver concentrado que busca a sua medida na alteridade, para tornar-se um processo-cálculo por meio do qual tudo é disposto em função do homem. Sob tal ponto de vista, a tese idealista de que a razão humana constrói ou cria o objeto termina endossando o elogio do Homo faber e se constitui como a própria essência da tecnologia, o seu desiderato conclusivo: por meio de elementos últimos totalmente manipuláveis, o  homem poderia até mesmo criar a sua própria imagem. Autores já analisaram a dimensão fáustica da tecnologia: digamos que a vontade de poder terminaria na coincidência do domínio e da criação.

Já na outra vertente deparamos a figura contestatória de Jean-Jacques Rousseau. É ele que elabora a primeira grande crítica ao racionalismo operacionalista, contrapondo com ênfase o elogio do homem-natureza ao que chama de homem-máquina. A razão estabelece o reino das convenções em que não há mais lugar para os sentimentos autênticos. Rousseau generaliza e fala simplesmente em civilização, mas o que ele açoita de fato é o império cartesiano.

Entretanto, contra o império, que só fazia crescer, onde refugiar-se? A resposta, sobretudo se se pensar em crítica ao racionalismo, deixa tudo a desejar: tudo dependeria do sentimento interior, que é sinônimo, para Rousseau, de sentimento da natureza. Em face dos sucessos da razão, as posições de Rousseau terminam soando de modo até mesmo nostálgico, o que não o impede de ter sido o desbravador de um caminho.

Racionalismo e Cientificismo

Como quer que seja, a contraposição está feita e ela desponta em todos os lugares. Pense-se, apenas para ilustrar a situação, na praça geometrizada, que surge na Renascença, e no seu contraponto, a descoberta do bosque, no rococó; ou veja-se a paisagem intelectualizada de Poussin em contraposição ao paisagismo puro de Gainsborough e à volúpia da natureza em Fragonard. O cogito cartesiano passa, nesse tempo, a dissimular-se na impessoalidade do baile de máscaras. Por essas e por tantas outras, pela primeira vez na história a natureza realmente existe, só que esse existir se dá aferrado a uma contrariedade excludente e inconcordável.

Basta comparar uma paisagem composta por Da Vinci a uma de Fragonard, e como tudo se faz claro. Como se vê, até mesmo por esses escassos exemplos, são duas tradições que apresentam uma rica e bem diversificada história, mas que apenas em nossos dias iriam exigir a forma do drama político.

Como pensar essa contradição? Exclua-se, antes de tudo, qualquer forma de maniqueísmo. Situar de um lado o bem e de outro o negativo, e entregar-se ao quixotismo de querer eliminar esse último, a nada leva, ou leva apenas a trasvestir as questões que realmente importa pensar. Horkheimer foi um dos mais vigorosos críticos do cientificismo que impregna o que ele chama de “teoria tradicional” — ou seja, o racionalismo — da linha instaurada por Descartes, e que avança, atravessando o positivismo clássico, até vir a caracterizar as diversas formas do nosso tempo. Mesmo ele, Horkheimer,  nunca desconheceu e muito menos depreciou o papel importantíssimo e mesmo definitivo exercido pela eficácia da teoria tradicional.

Nem por isso deixa de ser verdade que o confronto entre teoria tradicional e teoria crítica — e a exaltação desta última —, leva com  facilidade ao procedimento tão veemente quanto ingênuo de ver na primeira nada mais que a face da iniquidade, responsável pelo malbarato contra o qual se erguem os ecologistas. Nessa ingenuidade se enquadra também, por consequência, a identificação do avanço tecnológico com qualquer coisa como a destruição do homem ou da humanidade.

O ponto de partida para a colocação do problema está no entendimento de aqueles dois pólos excludentes em verdade se pressupõem, que um só é por meio do outro. Quanto ao mais, apresentam o mesmo fundo comum, qual seja, a descoberta ou o processo que fez presente a natureza. E é justamente na intimidade dessa presença que rebenta a contradição. Descartes torna possível Rousseau, Rousseau é como que exigido pelo cometimento cartesiano: as duas posturas se inventam reciprocamente e nisso reside a necessidade do problema.

Nessa necessidade é que estamos hoje todos instalados, antes de qualquer tomada de consciência, antes de qualquer tipo de opção. Se o racismo — apenas para aventar um exemplo — resultasse meramente de uma opção, ele sequer existiria; o racismo está entravado em uma disposição anterior, e é essa a disposição que deve ser discutida ou enfrentada.

Assim também, a profunda contradição em que se debate o nosso relacionamento com a natureza insere-se num nível prévio a qualquer opção. Sem dúvida, a partir daí a opção se faz possível, ainda que a contradição em si pareça incontornável, por constituir o dado primeiro que no caso não pode ser elidido a não ser à custa da desfiguração do problema.

Situação Incontrolável

O grave está precisamente neste ponto. A contradição se mostra em nossos dias como que emperrada em si própria, como que devolvida eternamente à sua tessitura interior. Realmente, não se consegue sequer avistar a menor possibilidade de superação dos termos antitéticos, a síntese conciliatória não alcança expressar-se nem mesmo em termos de uma utopia positiva, espécie de sonho norteador.

E no horizonte dessa dialética truncada desponta a desconfiança — talvez a certeza — de que permanece vedada ao homem a construção de uma síntese superadora, de que o problema, em seus pressupostos últimos, escapa à própria possibilidade de controle humano: o cálculo termina por gerar o não-cálculo radical — o que acaba revelando a inóspita situação em que hoje se agita a condição humana.

Tornou-se já um alvo até mesmo dócil avaliar os limites e as insuficiências do cientificismo em suas diversas modalidades — que são muitas e já ostentam uma história. Ainda que podendo incorrer na pecha de comodismo, digamos que por cientificismo se entende um pensamento que sorve os critérios e validade para aferir o conhecimento dos modelos elaborados pela moderna ciência da natureza, especialmente pela Física; na precisão formal esgotar-se-ia todo esforço legítimo no estabelecimento da cientificidade.

Encastelado nessa autossuficiência, explica-se o radical dogmatismo desse tipo de pensamento: é como se o saber entendido como pura contemplação, como intercâmbio com a impassibilidade divina, tal como aparece preconizado pela ética aristotélica, continuasse plenamente válido. Mas sabe-se que a ciência já não exibe esse empenho em pensar as esferas divinas, ela prefere embrenhar-se na realidade sensível, e isso não apenas para conhecer, mas para abrir as portas de toda possível dominação.

Digamos que a ciência, querendo ou não, assume a “culpa” da transformação do mundo, visto que toda a revolução tecnológica encontra a sua matriz possibilitadora na própria razão de ser da ciência moderna. Ora, o formalismo cientificista ignora integralmente qualquer sentido atribuível àquela culpabilidade, e continua a mover-se dentro de parâmetros que recusa para não se deixar contaminar: a inocência a qualquer preço é a desmedida histórica.

A Ciência e as Obras do Mundo

Mas nem se faz necessário pensar — ou refutar — a contemplação aristotélica para entender que a grande novidade em relação à ciência moderna está no fato de que, por meio de sua essência tecnológica, ela assume as dores do mundo — para o bem ou para o mal. Disso decorre até mesmo uma fatalidade: a revolução tecnológica se quer planetária e impõe-se como irreversível, e isso por razões as mais diversas — tantas e tão complexas que nem cabe discuti-las aqui: elas delimitam o próprio estatuto terreno do homem.

E pretender, como já foi frisado, sustar simplesmente e sem mais todo esse processo já não apresenta sentido, não é uma opinião séria, ou é uma opinião que não faz mais do que esconder o pessimismo e a descrença no próprio homem; o que frequentemente acoberta um comportamento de fuga, de tipo, por exemplo, orientalista. Entende-se que, nessa linha, a revolução tecnológica seja encarada como algo de profundamente negativo ou destruidor.

O desacerto dessa posição, entretanto, torna-a cega ao problema maior, que é o da transformação do homem por meio do abandono das estruturas neolíticas e metafísicas; é justamente a superação da doutrina dos dois mundos, mesmo que incipiente, que permite vislumbrar toda a carga imponderável que assola a transformação do humano. E mais: sem a crise do dualismo metafísico, o surto dos movimentos ecologistas sequer seria imaginável.

A Subordinação da Natureza

Convém insistir neste ponto. Como já foi dito, o que está em causa é o modo como a natureza se torna presente ao homem. E seu confinamento no cálculo terminou por revelar-se o seguro caminho que veio possibilitar a subordinação da natureza aos desígnios humanos (passando-se a ignorar os divinos). É precisamente esse modo de forçar a natureza a se mostrar que revela a ambiguidade inerente a esse tipo de procedimento.

De um  lado, é um caminho pelo qual se verifica, ainda que de modo estreito, um certo desvelamento daquilo que a natureza é. Mas é justamente esse modo de desvelamento que vai suscitar a reivindicação de outra maneira de fazer presente a natureza, frente à limitação do calculismo científico. E é importante observar que esse outro tipo decorre de dentro, por assim dizer, daquela limitação; realmente, falta, na mostra científica da natureza, um mate qualitativo, a presença de uma densidade maior dos fenômenos.

Altamente ilustrativa nesse particular é a  “polêmica” entre Newton e Goethe a respeito da teoria física das cores, e não menos significativa é a consideração que Heisenberg, em interessante ensaio, manifesta pela teoria goethiana. Sem dúvida, são os necessários processos de quantificação dos fenômenos que edificam os caminhos possibilitadores da manipulação da natureza. Mas é exatamente a quantificação, ou a redução dos fenômenos a um estatuto de quantidade pura, que mostra que a cor reivindicada por Goethe como qualidade, e que se faz presente em um Rembrandt, termina sempre rebelde aos processos de quantificação. A qualidade, então, não seria manipulável no sentido científico.

A natureza não é apenas aquilo que a ciência e a técnica nela veem.

Percebe-se, assim, que a aproximação do homem à natureza se faz nos tempos modernos entre as balizas de uma ambiguidade fundamental; trata-se de uma dualidade de termos que se implicam mutuamente. Os processos de manipulação, que tudo pretendem pôr a serviço do homem, encontram a sua situação limite — o que já se vem verificando em muitos setores — na destruição da natureza. Destruição no caso quer dizer, por exemplo: a redução da natureza às exigências estipuladas pelo consumo como critério final e tal como o encontramos organizado na sociedade contemporânea.

Mas é justamente na vizinhança desse limite extremo que desponta sempre com maior vigor a reivindicação — aliás já clássica — de uma outra forma de avaliação da natureza. O problema pode ser equacionado também em outros termos: como conflito entre natureza e cultura. Sem natureza não pode haver cultura, e sem cultura não existe condição humana.

Acontece que a ciência e suas traduções práticas passaram a ocupar o lugar central e soberano da cultura, e nessa medida o seu desenvolvimento não vem conseguindo desvencilhar-se de imbricações destruidoras da natureza. Com outras palavras: a contradição, em sua base, não chega a ser superada, ou, ao menos, não se alcança perceber hoje por quais meios se possa realizar. Isso significa o quê? Que todos os caminhos se encontram velados? Que a superação fica restrita á acumulação indefinida de casos particulares, sempre a esperar novas catástrofes?

A Irreversível Revolução Tecnológica

 Se tudo se concentra na contradição, é nela que tudo encontra a sua medida. A volta pura e simples à natureza não apresenta saída, por se tratar de um caminho que ignora o próprio projeto da cultura e a irreversibilidade da revolução tecnológica. De outro lado, torna-se cada vez mais claro que a ciência não oferece condições de solução para o caso, e ainda menos se pode esperar de qualquer forma de cientificismo.

O progresso da ciência se faz de modo quase imperturbável, no sentido de que determinada pesquisa leva necessariamente a outra pesquisa, e coibi-lo apenas adia o processo. E, como se vê por todos os lados, tudo isso acaba por produzir consequências sociais, e é precisamente em função de tais consequências que a ciência em si mesma se revela impotente. De qualquer maneira, continuamos presos da contradição.

Contudo, se a questão estiver bem colocada, cabe asseverar que a contradição de algum modo aponta para fora de si. O entrelace em que a contradição se verifica, nos termos de sua própria vigência, não pode estar em nenhuma das pontas que a constitui, pela simples razão de que nenhuma delas se basta. Neste  caso, desde dentro da contradição, deve haver um lugar em que essa vigência possa ser assumida. Esse lugar é a política.

Dissemos ainda, apenas a título de exemplo elucidado, que se o racismo dependesse de uma opção ele sequer existiria. Convém agora complementar o asserto em sua dimensão mais essencial. É que justamente por não se tratar em primeira instância de uma opção, é que a opção se torna legítima. O racismo está assentado em um conjunto de determinações sociais dificilmente erradicáveis, mas é precisamente essa dificuldade que acaba emprestando a toda opção o seu caráter de necessidade interna.

Assim também com a questão que assola hoje de modo tão crucial toda a problemática da natureza: na radical contradição que envolve o problema nasce a exigência da opção, fundamentando-a e tornando-a necessária. E dado o nível em que o tema se situa, a opção só consegue alcançar a plenitude do seu próprio querer se ela fizer política.

Quem fala em opção fala em liberdade. Para concluir este ensaio, convém tecer algumas considerações a respeito desse assunto, complicado como poucos. A tendência presente em certos autores, como por exemplo Heidegger, de confundir liberdade e transcendência humana, ou de entendê-la como a não-imanência a partir da qual se verifica a manifestação do ente, não deixa de oferecer certa pertinência ao assunto, mas está longe de colocar a questão da liberdade de modo satisfatório; é uma  posição que não se “compromete” suficientemente com o tema da liberdade. Ela parece valer, sim, se se pensar na elucidação dos pressupostos da liberdade, daquilo que a torna possível a partir de uma de suas vertentes.

Acontece que essa vertente é como que vazia, e a liberdade se instaura, ou cresce, a partir de outra vertente, oposta à primeira, que é o compromisso efetivo do homem: o homem não é livre, ele se torna — ou não — livre. Queremos com isso dizer que não existe uma essência da liberdade, como elemento pré-dado e constitutivo de uma suposta natureza humana.

A terrível afirmação de Bergson, de que a maioria dos homens nasce e morre sem nunca ter experimentado um único ato livre, pode acobertar a antipatia de um certo elitismo, mas ela aponta sem dúvida para uma dimensão correta do problema: não faz sentido defender uma natureza humana passivamente livre. Verifica-se, no máximo, um condicionamento no homem para a liberdade, mas o acicate que “inventa” a liberdade deriva todo inteiro da necessidade do compromisso.

Liberdade e Necessidade

Há aqui dois temas intimamente relacionados. De um lado, a liberdade é um fenômeno histórico, ela começa nessa historicidade que insere o homem no concreto das situações; a liberdade grega não é a romana, que não é a medieval, que não é a moderna. Mesmo dentro da burguesia, constata-se a evolução do próprio conceito de liberdade. Há uma história da liberdade, porque há uma história dos compromissos com os quais o homem se deixa envolver. O outro tema, relacionado a esse, mostra a vinculação que há, necessária, entre liberdade e necessidade. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, a liberdade medra tão somente em campo minado pela necessidade.

Há, assim, uma liberdade burguesa. Tentemos um escorço, apenas, daquilo que a constitui em seu cerne. O traço mais marcante da liberdade na acepção burguesa reside na autonomia do sujeito, ideia esta claramente expressa por Descartes. Assim como há um cogito autônomo, há também um livre arbítrio que lhe corresponde, isento de qualquer constrangimento de forças exteriores.

Caberia fazer aqui um paralelo entre a concepção cartesiana do conhecimento e a do livre arbítrio. Digamos, apenas, que ao conhecer, segundo Descartes, o sujeito se mostra mestre do objeto, visto que o constrói a partir do resultado da análise que o reduziu a seus elementos simples. Assim, a coisa se transforma em objeto e, na qualidade de construído, ele se presta ao domínio do homem. Esse ser-mestre é o que caracteriza também o livre arbítrio. Aliás, a liberdade cartesiana se reduz à capacidade de bem escolher.

Ora, quem escolhe dispõe do escolhido, o julga desde cima e lhe é superior — o escolhido se transmuta num objeto que se submete à dominação do sujeito livre. Desse modo, o sujeito não sofre qualquer amarra, e sua liberdade envolve acima das pressões exteriores e como senhor delas. É evidente que tal concepção da liberdade se coaduna perfeitamente bem com o individualismo dos tempos modernos: autonomia, livre iniciativa, soberania da liberdade, valorização do trabalho, propriedade privada — tudo isso são aspectos do plurifacetado homem burguês.

Acontece que esse homem evolui — e com ele é também a noção de liberdade que se modifica. Essa transformação vai acabar por coincidir com a crise do individualismo burguês, que parece manifestar em nossos dias as suas consequências mais extremas.

Realmente, o exagero em que se expressam certos fenômenos sociais mostra isso, desde o chamado capitalismo selvagem até as diversas formas de comportamento que levam a sua independência a ponto de ignorar qualquer vínculo com a responsabilidade coletiva, ou de rebelar-se contra todas as formas de consenso (coisas que facilmente geram regimes totalitários). No entanto, parece que são justamente tais formas de exacerbação da liberdade que levam-na a revelar um novo perfil. E tudo está a indicar que esse perfil se concentra em torno de uma só palavra: o compromisso.

A Liberdade Burguesa

Não obstante, ainda hoje subsiste um acordo bastante disseminado sobre o que seja a liberdade; fala-se em autonomia, independência, assim como quando se diz: “A minha liberdade termina onde começa a liberdade do outro”. Ou seja, o homem burguês frequentemente se compreende como isolado: de súdito passou a ser cidadão, e deixou de edificar os muros da cidade para erguer o cercado de sua própria casa. E é essa concepção, conforme em tudo com a melhor tradição cartesiana, que principia hoje a ser contestada.

Nesse novo horizonte, a liberdade, longe de se pretender independente, busca construir formas de dependência — dependência em relação a quê? Em relação ao outro, à coletividade, a uma nova ordem social, a novos padrões de criatividade, à natureza — a tudo aquilo que constitui ou deve constituir o mundo humano em sua constante faina de transformação.

O tema merece um pouco mais de atenção. Se se admite a existência no homem de qualquer coisa como uma disponibilidade para ser livre, ou que a transcendência é a raiz da liberdade, tal raiz ainda não é a liberdade, mesmo porque se mostra vazia de qualquer conteúdo. Mas se se pretende dizer, ao contrário, que a liberdade está na dependência, entendida como já dada e cega, caímos num determinismo que também nada tem de comum com a liberdade.

Falou-se acima em construir formas de dependência, e é justamente isso que institui o compromisso. Com outros termos: a liberdade surge por meio do compromisso, ela se constrói à medida que assume a alteridade. Pressupõe, consequentemente, a aptidão para o compromisso, e este só adquire um rosto quando se desprende daquela autonomia cartesiana para se constituir com base na alteridade.

Digamos então, novamente, que o homem não é livre, mas que se torna livre, dependendo dos compromissos que chega a assumir. E se isso assim é, percebe-se que não há incompatibilidade entre liberdade e necessidade, a não ser que a dependência se revele aleatória ou se perde sentido. A liberdade também poderia ser definida como construção do sentido. Vale dizer que o homem vive dentro de um sentido que ele mesmo fabrica, mas quando sua inserção é compromissiva com a alteridade.

Disso se pode depreender também que a liberdade é sempre, e essencialmente, um fenômeno político, mesmo quando o compromisso acontece reduzido aos limites de uma relação intersubjetiva, por isso que o surto do nós é o embrião do coletivo. Se definirmos a política como arte da responsabilidade coletiva — definição correta mas insuficiente por reduzir o fenômeno político ao seu aspecto moral —, então entende-se que a liberdade encontre o seu alicerçamento maior justamente naquelas dimensões da vida que se impõem como necessárias.

Necessidade que hoje se manifesta de modo crucial, entre outros lugares, precisamente na questão da natureza. Se esse tipo de compromisso se tornou hoje necessário, é porque o conceito burguês tradicional de liberdade não é mais suficiente, está em crise, ele já não dá conta do modo como o homem é no mundo.

Ou seja, a natureza deixou de ser o grande repositório, eternamente inesgotável, no qual o homem exauriria indiscriminadamente a sua riqueza. Daí surgiu uma nova necessidade, e consequentemente um novo tipo de compromisso. O tema, de resto, não se restringe à questão da natureza, pois alcança o modo de o homem ser no mundo em todas as suas dimensões.

Ocorre que a concepção clássica do burguês e da ciência burguesa levou a resultados que passaram a desautorizar aquela concepção tradicional. A liberdade cartesiana, ainda que continue vigente, entra em crise e começa a transmutar-se em seu próprio cerne (um excelente índice é precisamente o movimento ecológico). E isso vale também para aquela inteligência operacional a que nos referimos mais acima; sem dúvida, ela continua aí e continua válida. De certo modo, ela se faz muito mais presente hoje do que no passado, já que a atividade tecnológica cresceu numa progressão que se tornou até mesmo incontrolável.

Descontados os comportamento em que o lirismo se mescla com o abstrato, sequer podemos imaginar o homem contemporâneo, no seu dia-a-dia concreto, desprovido da tremenda carga tecnológica que o cerca. Mas é justamente nesse excesso que desfalecem a eficácia de todos os cientificismos e a da própria ciência, reclamando a resposta política como indeclinável.

Não é de estranhar, por isso mesmo, que o movimento a favor da defesa da natureza, em alguns países, já se tenha tornado o programa de um partido político determinado.Até que ponto a defesa dos temas ecológicos deva confundir-se com a atividade exclusiva de um partido não deixa de colocar sérios problemas a serem discutidos. Mas isso apenas reforça a tese de que toda a questão ecológica não pode mais ser resolvida em termos de ciência e tecnologia. A natureza tornou-se agora, antes de tudo, um tema visceralmente e necessariamente político.

( © Bornheim, G., 1985 )

GERD ALBERT BORNHEIM (1929 – 2002). Foi  professor de filosofia De Universidade Federal do Rio de Janeiro. Deu cursos no Instituto de Filosofia da Universidade de Frankfurt, na Alemanha. Escreveu vários livros, entre eles, Sartre e o Existencialismo, e Introdução ao Filosofar: O Pensamento Filosófico em Bases Existenciais.

 

(Este ensaio foi originalmente publicado na revista Pau Brasil (São Paulo), no. 6, maio junho, de 1985, págs. 27-36.)

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