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O caldeirão azul

O CALDEIRÃO AZUL

O papel da ciência nas nossas vidas

Margarete Hülsendeger

 

A ciência jamais responderá a todas as perguntas pelo simples motivo de que jamais saberemos todas as perguntas que podem ser feitas! Ao avançar, a ciência encontra novas perguntas que não poderia ter antecipado.

Marcelo Gleiser

 

Vivemos tempos conturbados. Vivemos tempos estranhos. Vivemos tempos nos quais especialistas em “coisa nenhuma” arvoram-se no direito de disseminar ideias sem qualquer fundamento científico: a terra é plana, vacinas provocam autismo, o aquecimento global é uma ficção e tantas outras tolices vindas diretamente da idade média. Como enfrentar essa onda de ignorância e obscurantismo que, de repente, aterrissa em pleno século XXI? A forma mais efetiva é nos rodearmos de pessoas que sejam, realmente, especialistas em suas áreas. Homens e mulheres que, de fato, estudaram, pesquisaram e escreveram tendo como base sua larga e reconhecida experiência em seus respectivos campos de atuação.

Com esse espírito quero recomendar a leitura do livro O caldeirão azul (2019)[1], do físico brasileiro Marcelo Gleiser (1959). Gleiser, além de físico, é astrônomo, professor, escritor e roteirista, com vários livros publicados, assim como, colunas de divulgação científica no jornal Folha de São Paulo. Recebeu dois Prêmios Jabutis, o primeiro, em 1998, com o livro A dança do universo e o segundo, em 2002, por O fim da terra e do céu. Formou-se em física pela PUCRJ, fez seu mestrado na UFRJ e seu doutorado no King’s College London, na Universidade de Londres. Também tem dois pós-doutorados, um pela Fermilab e outro pelo Institute for Theoretical Physics da Universidade da Califórnia. Essas informações são importantes para que o leitor possa saber que se trata de um profissional sério, um pesquisador altamente credenciado e com um currículo devidamente documentado[2].

O caldeirão azul é um livro de 224 páginas dividido em quatro partes: “Ciência e espiritualidade”, “A importância do ser humano”, “O mundo em crise” e “O futuro da humanidade”. Nele o autor trata dos mais diferentes temas em uma linguagem que o leitor leigo em assuntos científicos consegue acompanhar sem nenhum problema. Suas posições estão sempre fundamentadas na história da ciência e nos resultados das pesquisas científicas mais recentes. Todos os assuntos são tratados com o mais absoluto respeito, com o autor preocupando-se em expor distintos pontos de vista dando oportunidade ao leitor curioso de buscar informações em outras fontes. Os únicos momentos nos quais Gleiser mostra-se claramente irritado é quando comenta opiniões que desmerecem a ciência e as suas conquistas e posicionamentos que colocam em risco a dignidade humana.

Assim, ao falar das relações possíveis entre ciência e religião considera ingênuo negar o poder da religião no mundo já que bilhões de pessoas se declaram seguidoras de algum tipo de fé. Acredita que a necessidade da fé vai além da crença, tendo um papel social essencial: “ela cria alianças que restituem um senso de dignidade e de comunidade que governos muitas vezes deixam de lado”. Afirma que a posição dos ateus radicais é inconsistente com os critérios defendidos pelo método científico já que negam categoricamente a existência de qualquer tipo de entidade divina. E o problema está, justamente, nessa negativa categórica já que a ciência só pode negar algo categoricamente após observações absolutamente conclusivas. E, como diz Gleiser, “observações absolutamente conclusivas não existem”. Essa posição, no entanto, não o impede de criticar aqueles que chamou de “literalistas”, ou seja, indivíduos que insistem na ideia de que os textos religiosos explicam ou podem prever fenômenos naturais de forma científica, para Gleiser, essa é uma “proposta absurda”.

Nos capítulos que abordam a importância do ser humano e sua relação com o planeta, Gleiser faz um chamamento para uma maior conscientização dos problemas e perigos que em breve enfrentaremos se não soubermos cuidar do nosso pequeno planeta. Ele observa que mesmo que existam bilhões de estrelas espalhadas pelo universo, cada uma delas potencialmente capaz de ter em órbita planetas e satélites, não há provas da existência de vida e muito menos de vida inteligente, pelo menos uma inteligência como nós a conhecemos. Desse modo, para Gleiser, é importante convencer-nos de que a Terra é a nossa única casa, distinguindo-se de outros mundos conhecidos por ser “um oásis para a vida”. Daí a necessidade de aprendermos muito sobre essa casa, tratando-a com humildade e respeito, já que é a “única opção que temos se quisermos continuar por aqui por outros tantos milhares de anos”.

Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestra e doutoranda em Teoria Literária na PUC-RS. margacenteno@gmail.com

E se conseguirmos viver nessa casa por milhares e milhares de anos, o que o futuro nos reserva? Essa é a pergunta que Gleiser faz ao leitor na quarta parte do livro, “O futuro da humanidade”. Para respondê-la, o autor no descreve um mundo no qual homem e máquina estarão intimamente ligados, um mundo habitado por “transumanos”. Essa realidade, que parece vir diretamente das páginas dos livros de ficção científica, já está muito presente nas nossas experiências diárias quando nos conectamos a celulares, tablets e laptops para acessar outros espaços e pessoas. Os celulares, por exemplo, não são mais aparelhos que você usa apenas para se comunicar, hoje eles são “uma extensão digital de quem você é”, fazem parte de você, ou seja, “você e a máquina são um”. Atualmente, a necessidade de permanecer conectado é tão intensa que afastar-se dessa nova realidade pode significar um verdadeiro desafio, gerando, muitas vezes, angústia e ansiedade. Contudo, apesar de dizer que as telas não são nossas inimigas, Gleiser defende que precisamos estar atentos ao que fazemos, não agindo automaticamente, sem consciência de nossos atos e escolhas. Assim, se um retorno à era analógica é impossível, é preciso, diz o autor, aprender a nos “desengajar das telas e a nos reengajar com a vida real, sem o meio digital como ponte entre você e os seus amigos, sua família ou a Natureza”.

O caldeirão azul é um livro “refrescante”, no sentido de nos dar, não só um panorama do nosso presente, como também um vislumbre do que nos espera o futuro. Os textos de Gleiser são lúcidos, claros e coerentes, sem qualquer tipo de pedantismo ou de jargão que possa dificultar a leitura. Sua proposta é simples apresentar ao seu leitor quatro pontos de vistas complementares sobre o papel da ciência em nossas vidas, demonstrando que ela não é fria e nem está apenas cheia de cálculos e de experimentos complicados. Para o físico brasileiro, a metodologia científica não define a ciência. Ao contrário. Segundo ele, é preciso incluir o aspecto emocional, “aquilo que leva pessoas tão diferentes a explorar, durante suas vidas, os fenômenos naturais e o que nos revelam sobre o mundo”. Gleiser nos propõe uma reflexão sobre o mundo que queremos viver, um mundo no qual as diferenças são respeitadas e estamos abertos a aprender com os pensam diferente de nós. Em tempos tão confusos e conturbados esse é um livro que eu recomendo!

[1] GLEISER, Marcelo. O caldeirão azul: o universo, o homem e seu espírito. Rio de Janeiro: Record, 2019.

[2] Pode-se encontrar seu currículo no seguinte link: https://physics.dartmouth.edu/.

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